tag:blogger.com,1999:blog-58179505890984889142024-03-04T22:31:52.458-08:00Folhas PeregrinasContos encontrados em folhas
de cadernos dos tempos de colégio
e contos atuais.Luciene Aguiarhttp://www.blogger.com/profile/02679943218017441100noreply@blogger.comBlogger7125tag:blogger.com,1999:blog-5817950589098488914.post-31109296531189371452010-12-10T08:15:00.000-08:002013-03-24T08:16:43.620-07:00APENAS MAIS UMA FEIRA DE SEXTA-FEIRA<br />
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 54.0pt;">
<br /></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 54.0pt;">
A madrugada
daquela sexta-feira estava fria por demais. Seu Dezinho olhou seu antigo
relógio de pulso de marca <i>Orient</i> e
viu que já passavam das 3h e meia da manhã. Teria que levantar, e, rápido, pois
do seu pequeno sitio até a cidade tinha um bom pedaço de chão para vencer. Sua
filha Maria e sua cadelinha Tulipa iriam acompanhá-lo. Essa era a rotina de
toda sexta-feira, dia em que levavam alguns poucos produtos para vender na
feira. Naquele dia específico levaria banana, batata-doce, alguns frangos
caipiras e algumas poucas dúzias de ovos. O dinheiro que recebia em troca da
mercadoria, lá mesmo na cidade deixava, comprando algumas coisas pra casa e
bebendo alguns goles de cachaça.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 54.0pt;">
Quando
levantou, sua cachorrinha, que dormia nuns trapos ao lado da sua cama, já
estava a sua espera, toda alegre e faceira, pois sabia que aquele dia era dia
de passeio. Virou para o lado e sacudiu
a mulher que resmungou fazendo força para acordar. Tornou a cutucá-la e
chamou-a com uma voz que mais parecia um grunhido. Lá do seu quarto mesmo
gritou por Maria que dormia na sala sobre um couro de boi e uns pedaços de pano
que um dia foi uma coberta. A menina, de um salto pulou fora da “cama” e
esfregando os olhos ainda desorientada se dirigiu para o quintal a fim de
urinar e lavar o rosto. Não queria se atrasar, pois tinha medo do pai,
principalmente das suas gritarias. Odiava o grunhido da sua voz, pois os sons
que lhe saiam dos lábios eram mais facilmente compreendidos por sua cadelinha
do que por qualquer ser humano. O diálogo entre eles era pouco ou quase nada.
Falavam o estritamente necessário. Rosnavam um para o outro quando queriam algo
ou na prestação de contas de alguma tarefa realizada.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 54.0pt;">
Seu Dezinho
vestiu a sua melhor roupa. Uma calça de tergal azul escura e uma camisa branca
de igual tecido. O chapéu de massa azul, presente de um amigo que chegara de
São Paulo, era o melhor que tinha. O que usava na roça era de um couro velho já
bastante estragado. Dirigiu-se às
pressas para a cozinha para fazer o desjejum e viu que a mulher ainda labutava
em acender o fogo. A fumaça que subia do já gasto fogão de lenha ardeu-lhe nos
olhos e ele praguejou. Era um homem eternamente mal-humorado, de natureza
azeda. A mulher e a única filha tremiam ao som da sua voz. Impaciente deu outro
berro chamando por Maria. Esta entrou na cozinha cabisbaixa já vestida com sua
melhor roupa: um vestido de chita vermelha estampada com florzinhas brancas e
rosas. Aquele vestido foi presente de sua madrinha que morava <st1:personname productid="em S ̄o Paulo. Sua" w:st="on"><st1:personname productid="em S ̄o Paulo." w:st="on">em São Paulo.</st1:personname> Sua</st1:personname>
madrinha prometera levá-la para morar com ela, mas Maria já não acreditava que
isso fosse acontecer, pois já fazia muito tempo que essa promessa fora feita.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 54.0pt;">
Depois de mais
alguns minutos ela, o pai, a cachorrinha e um burro que carregava as
mercadorias num caçuá, marchavam num passo rápido e constante para o vilarejo.
Seu Dezinho e a cachorrinha iam à frente, Maria, tiritando de frio, e o burro
iam atrás. Maria observava o pai e a cachorra. Eles se entendiam tão bem, se
comunicavam com tanta facilidade que Maria ficava pensando que seu pai tinha
algum dom especial por consegui entender e ser tão bem compreendido pela
cachorrinha. Com Tulipa, ele era sempre carinhoso, dócil. Quando almoçavam na
feira e mesmo em casa, ele reservava sempre os melhores pedaços de carne, nas
raras vezes que podiam desfrutar dessa iguaria, para si e para a cachorra. Na
estrada, indo pra feira ou voltando pra casa, quem primeiro recebia água para
matar a sede era a cachorrinha. Maria não mais se importava com aquilo. Talvez
nunca tivesse se importado. Era natural para ela, pois sempre fora assim. Não
tinha por que ser diferente Não sabia se seu pai é que era próximo dos animais
ou se Tulipa é que era próxima dos humanos.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 54.0pt;">
O dia começava
a raiar no horizonte e o céu surgia tingido em variados tons de amarelo. Maria
sempre gostava de ver o nascer do sol. Adorava ver as aquelas formas mágicas e
misteriosas que o colorido formava no nascer do dia. Lembrou-se do cochilo sob
o pé de cedro que aquele dia não poderia desfrutar. Desfrutaria sim do calor
infernal naquela feira cheia de gente e de odores estranhos que a faziam enjoar
e sentir tontura. Maria já se sentia cansada daquela rotina de todo dia de
sexta feira sair com seu pai e a cachorra na madrugada fria. Sua mãe, coitada,
ficava anos sem colocar os pés pra fora da porteira da “roça”. Entrava dia e
saia dia, socada naquela casa, sem ver nada nem ninguém. Mas aquilo para Maria
também era normal, natural. Sempre fora assim, então, acreditava que não podia
ser diferente, ou melhor, nem imaginava que podia ser diferente. <o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 54.0pt;">
Ao entrar na
currutela, o dia já estava claro, mas era ainda muito cedo. Dirigiram-se ao
lugar em que, costumeiramente, ficavam, arriaram a carga sob uma árvore de copa
até larga, que lhes proporcionava uma boa sombra. Mas com o subir do sol, mesmo
sob aquela árvore, o calor iria se instalar. Maria já sabia que seu pai ia
ficar o dia inteiro zanzando pra lá e pra cá e ela vendendo as mercadorias. O
burro se acomodou sob a copa da árvore e pareceu respirar aliviado quando
tiraram de sobre suas costas o peso dos produtos de venda. Maria sentou-se no
chão. Já sentia fome. Olhou para as bananas, mas não se atreveu a pegar nenhuma
porque já estavam contadas e se ousasse comer alguma, a surra que tomaria, não
valeria mais do que algumas horas de fome. Maria já se resignara a sentir o
estômago roer. Sabia que só comeria um pouquinho de farofa ao meio-dia, mas
isso também era natural e normal. Sempre fora assim, não tinha porque ser
diferente.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 54.0pt;">
A manhã
passou, o sol subiu e Maria continuava lá, vendendo os produtos e guardando os
poucos trocados num pequeno saquinho de pano. Vez ou outra seu pai aparecia e
lhe tomava o graúdo, deixando-lhe apenas os miúdos para algum eventual troco.
Ao meio dia os três comeram a farofa de ovo e Maria sabia que a si seria
reservada uma pequena parte. Comeu indiferente, mas sentiu um certo conforto no
estômago que há horas estava oco e soltando cada ronco que não lhe permitia
cochilar sob aquele calorão. Agora com o estômago forrado, o sono iria
dominar-lhe de vez, mas ela teria que resistir para vigiar a mercadoria. Se
sumisse alguma coisa seu pai lhe daria uma peia sem dó e sem piedade. Maria se
colocou de pé para espantar a modorra que se aproximava. Olhou pro burro e este
de olhos fechados parecia cochilar. Invejou-o, pois ele poderia dormir a tarde
toda se quisesse. Olhou pro chão e viu que ali ainda restavam duas galinhas e
algumas pencas de banana. Pediu a Deus que lhe permitisse vender tudo e já. <o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 54.0pt;">
A tarde
começou a avançar e Maria percebeu naquela altura, já indiferente, que a
mercadoria ia aos poucos desaparecendo. Sabia que venderia tudo. Agora tanto
fazia vender rápido ou não, pois o sono já havia ido embora. A tarde caiu e seu pai apareceu novamente.
Arrumaram as tralhas e pegaram o caminho de casa. Ele e Tulipa na frente ela e
o burro atrás. Maria andava por aquele caminho, como sempre andou toda sexta
feira. Olhou para os pés cobertos de poeira, os mesmos de sempre. Olhou a paisagem,
a mesma de sempre, e foi como se Maria não tivesse visto nada, pois quando se
acostuma com as coisas é como se não as percebesse mais. Mas isso era normal e
natural para Maria. Sempre fora assim. Não tinha porque ser diferente.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 54.0pt;">
<br /></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 54.0pt;">
Março de 1983</div>
Luciene Aguiarhttp://www.blogger.com/profile/02679943218017441100noreply@blogger.com1tag:blogger.com,1999:blog-5817950589098488914.post-75358863148049639062010-11-17T08:04:00.000-08:002013-03-24T08:05:39.005-07:00LUA CHEIA NA SEXTA-FEIRA DA PAIXÃO<br />
<div style="margin-bottom: 6.0pt; margin-left: 0cm; margin-right: 0cm; margin-top: 6.0pt; mso-line-height-alt: 11.25pt; text-align: justify; vertical-align: baseline;">
<br /></div>
<div style="margin-bottom: 6.0pt; margin-left: 0cm; margin-right: 0cm; margin-top: 6.0pt; mso-line-height-alt: 11.25pt; text-align: justify; vertical-align: baseline;">
A
tarde já despencava no horizonte e o céu estava tingido de um laranja
avermelhado prenunciando uma noite fria. Já se podia ver algumas estrelas e a
enorme lua cheia. Maria e sua mãe Dona Raimunda estavam, ambas, debruçadas na
mesma janela, observando a estrada na esperança de ver surgir, na curva que se
formava próximo a um pé de jatobá, seu Dezinho que desde cedo fora para o
vilarejo. Maria não fora naquela sexta-feira porque era Semana Santa e não
tinha feira.<o:p></o:p></div>
<div style="margin-bottom: 6.0pt; margin-left: 0cm; margin-right: 0cm; margin-top: 6.0pt; mso-line-height-alt: 11.25pt; text-align: justify; vertical-align: baseline;">
Já
estavam ali há um bom tempo e Maria já se sentia agoniada suspeitando do que
ela sempre desconfiava, mas que ainda não tivera coragem de confessar à mãe.<o:p></o:p></div>
<div style="margin-bottom: 6.0pt; margin-left: 0cm; margin-right: 0cm; margin-top: 6.0pt; mso-line-height-alt: 11.25pt; text-align: justify; vertical-align: baseline;">
-
Vamos entrar mãe! Vamos entrar e fechar bem as portas e janelas! – Implorou
Maria olhando o céu e fixando a lua cheia que tal e qual um queijo grande e
amarelado pairava pendurada no céu gigantesco, estrelado e frio.<o:p></o:p></div>
<div style="margin-bottom: 6.0pt; margin-left: 0cm; margin-right: 0cm; margin-top: 6.0pt; mso-line-height-alt: 11.25pt; text-align: justify; vertical-align: baseline;">
Dona
Raimunda olhou-a intrigada e percebeu que os olhos da filha estavam arregalados
e que seu queixo tremia.<o:p></o:p></div>
<div style="margin-bottom: 6.0pt; margin-left: 0cm; margin-right: 0cm; margin-top: 6.0pt; mso-line-height-alt: 11.25pt; text-align: justify; vertical-align: baseline;">
-
Esse bate-queixo é de frio, Maria? Não tá frio pra bater queixo, não! – Tocou-a
na testa – Será que tu ta com febre? Não, não tá. – Constatou. Olhou mais uma
vez para a estrada, balançou a cabeça e se afastou para fechar a janela –
Vamos, vamos entrar. Teu pai não vem mais não. Já escureceu mesmo! Ele tem essa
mania de toda Sexta-feira Santa descambar pra cidade e só voltar no outro dia!
Todo ano é isso!<o:p></o:p></div>
<div style="margin-bottom: 6.0pt; margin-left: 0cm; margin-right: 0cm; margin-top: 6.0pt; mso-line-height-alt: 11.25pt; text-align: justify; vertical-align: baseline;">
Fechou
as janelas, verificou a porta da rua e do fundo da casa, todas de madeira
reforçada e com taramelas.<o:p></o:p></div>
<div style="margin-bottom: 6.0pt; margin-left: 0cm; margin-right: 0cm; margin-top: 6.0pt; mso-line-height-alt: 11.25pt; text-align: justify; vertical-align: baseline;">
-
Pelo menos o madeiramento da casa ele soube escolher! É um homem tão
lambanceiro, tão descuidado com a casa, que não sei por que milagre não botou
umas madeiras podres pra proteger a casa.<o:p></o:p></div>
<div style="margin-bottom: 6.0pt; margin-left: 0cm; margin-right: 0cm; margin-top: 6.0pt; mso-line-height-alt: 11.25pt; text-align: justify; vertical-align: baseline;">
Olhou
de novo pra Maria que estava encorujada num banco tremendo igual a uma vara
verde.<o:p></o:p></div>
<div style="margin-bottom: 6.0pt; margin-left: 0cm; margin-right: 0cm; margin-top: 6.0pt; mso-line-height-alt: 11.25pt; text-align: justify; vertical-align: baseline;">
- O
que é que tu tem menina! Não vai adoecer agora, pelo amor de Deus!Vê que tamos
sozinhas aqui! Não tem viv´alma num raio de quase meia légua! Pare com essa
tremedeira!<o:p></o:p></div>
<div style="margin-bottom: 6.0pt; margin-left: 0cm; margin-right: 0cm; margin-top: 6.0pt; mso-line-height-alt: 11.25pt; text-align: justify; vertical-align: baseline;">
-
Não to doente não, mãe. Só não to conseguindo parar de bater o queixo. Deve ser
por causa do jejum!<o:p></o:p></div>
<div style="margin-bottom: 6.0pt; margin-left: 0cm; margin-right: 0cm; margin-top: 6.0pt; mso-line-height-alt: 11.25pt; text-align: justify; vertical-align: baseline;">
- É
pode ser! – Colocou a mão no queixo e pôs-se a cismar por alguns minutos,
depois como quem decide falou - Pra tu não adoecer, Deus não vai se importar se
a gente quebrar o jejum só com um gole de café. – Olhou pra cima e fez o sinal
da cruz - Vem, vamos pra cozinha tomar só um tiquinho. O fogo ainda ta aceso e
lá tu para com esse treme-treme – saiu pros fundos da casa acompanhada de uma
Maria acabrunhada e apavorada.<o:p></o:p></div>
<div style="margin-bottom: 6.0pt; margin-left: 0cm; margin-right: 0cm; margin-top: 6.0pt; mso-line-height-alt: 11.25pt; text-align: justify; vertical-align: baseline;">
Entraram
na cozinha e Dona Raimunda acendeu o fifó num tição de lenha. Maria puxou o
banquinho pra perto do fogão. Acomodou-se colocando os dois pés em cima e
cobrindo as pernas com a saia do vestido. Com mãos geladas recebeu a xícara de
café que sua mãe lhe estendia. Tirou um gole e ficou olhando aquela xícara de
esmalte verde já com algumas partes descascadas pelos anos de existência. Virou
pra mãe com os olhos espichados:<o:p></o:p></div>
<div style="margin-bottom: 6.0pt; margin-left: 0cm; margin-right: 0cm; margin-top: 6.0pt; mso-line-height-alt: 11.25pt; text-align: justify; vertical-align: baseline;">
-
Será que o pai ainda vem? Queria dormir com a senhora, mas tenho medo de que
ele chegue e brigue comigo!<o:p></o:p></div>
<div style="margin-bottom: 6.0pt; margin-left: 0cm; margin-right: 0cm; margin-top: 6.0pt; mso-line-height-alt: 11.25pt; text-align: justify; vertical-align: baseline;">
Dona
Raimunda estalou a boca, sacudiu a cabeça e concluiu:<o:p></o:p></div>
<div style="margin-bottom: 6.0pt; margin-left: 0cm; margin-right: 0cm; margin-top: 6.0pt; mso-line-height-alt: 11.25pt; text-align: justify; vertical-align: baseline;">
-
Que importa! Ele briga de qualquer jeito. Briga por tudo e por nada! Uma briga
a mais ou a menos não faz diferença! – Chupou um gole de café da xícara e
perguntou: -Melhorou a tremedeira? Que diabos será isso? – Benzeu-se pelo nome
pronunciado - Tu andou nadando no rio até que hora, Maria?<o:p></o:p></div>
<div style="margin-bottom: 6.0pt; margin-left: 0cm; margin-right: 0cm; margin-top: 6.0pt; mso-line-height-alt: 11.25pt; text-align: justify; vertical-align: baseline;">
-
Eu não nadei mãe! O rio ta quase seco, esqueceu?<o:p></o:p></div>
<div style="margin-bottom: 6.0pt; margin-left: 0cm; margin-right: 0cm; margin-top: 6.0pt; mso-line-height-alt: 11.25pt; text-align: justify; vertical-align: baseline;">
A
velha fingiu que não ouviu e olhando pro telhado e observou: - Já deve ser
tarde. Teu pai não vem mais não. Veja a lua, já ta subindo. Maria ergueu a
cabeça e viu por algumas frestas no telhado que a lua já tinha alcançado um
ponto um tanto alto no firmamento. Ficaram ali por um bom tempo tomando café. O
tiquinho acabou secando o bule que estava cheio.<o:p></o:p></div>
<div style="margin-bottom: 6.0pt; margin-left: 0cm; margin-right: 0cm; margin-top: 6.0pt; mso-line-height-alt: 11.25pt; text-align: justify; vertical-align: baseline;">
-
Vamos deitar e tentar dormir – Disse Dona Raimunda decidindo –se e indo em
direção à porta.<o:p></o:p></div>
<div style="margin-bottom: 6.0pt; margin-left: 0cm; margin-right: 0cm; margin-top: 6.0pt; mso-line-height-alt: 11.25pt; text-align: justify; vertical-align: baseline;">
Maria
de pronto a acompanhou. Saíram da cozinha e foram direto para o quarto. Maria
de imediato se abaixou e tirou de debaixo da cama um urinol esmaltado de branco
e se agachou pra urinar. Sua mãe olhou-a com um ar de repreensão e esbravejou:<o:p></o:p></div>
<div style="margin-bottom: 6.0pt; margin-left: 0cm; margin-right: 0cm; margin-top: 6.0pt; mso-line-height-alt: 11.25pt; text-align: justify; vertical-align: baseline;">
-
Por que tu não fez no quintal Maria, antes da gente vim deitar? Vai encher o
penico antes da hora.<o:p></o:p></div>
<div style="margin-bottom: 6.0pt; margin-left: 0cm; margin-right: 0cm; margin-top: 6.0pt; mso-line-height-alt: 11.25pt; text-align: justify; vertical-align: baseline;">
-
Eu faço pouquinho mãe. Não to com muita vontade. É só pra não ter que levantar
mais tarde. – O queixo de Maria ainda batia, sua mãe percebeu pela voz tremida.<o:p></o:p></div>
<div style="margin-bottom: 6.0pt; margin-left: 0cm; margin-right: 0cm; margin-top: 6.0pt; mso-line-height-alt: 11.25pt; text-align: justify; vertical-align: baseline;">
-
Credo em cruz menina! Segunda-feira, se tu não melhorar, vou ter que te levar
no médico. Isso não pode ser por causa do jejum, não, senão eu também estaria
tremendo! T´esconjuro, deve ser alguma coisa do outro mundo! Será que tu tá com
algum encosto?<o:p></o:p></div>
<div style="margin-bottom: 6.0pt; margin-left: 0cm; margin-right: 0cm; margin-top: 6.0pt; mso-line-height-alt: 11.25pt; text-align: justify; vertical-align: baseline;">
Maria
deu de ombros e levantando-se empurrou o urinol para debaixo da cama e se
deitou encolhendo debaixo da coberta. Sua mãe já se ajeitava por sua vez,
pondo-se a debulhar o terço, como fazia todas as noites e principalmente naquela
que era uma noite santa. As horas foram passando e Maria sem ainda conciliar o
sono viu quando sua mãe findou as orações e se deitou logo de imediato pondo-se
a puxar um ronco acompanhado de um som semelhante a um assovio. Maria,
prestando atenção aos sons do sono da mãe, dormiu. Depois de alguns minutos um
uivo longo e doloroso assustou-as fazendo-as acordarem com os corações aos
pulos.<o:p></o:p></div>
<div style="margin-bottom: 6.0pt; margin-left: 0cm; margin-right: 0cm; margin-top: 6.0pt; mso-line-height-alt: 11.25pt; text-align: justify; vertical-align: baseline;">
-
Valei-me Nosso Senhor Jesus Cristo! Foi tu Maria? – Benzeu-se Dona Raimunda
fazendo o sinal da cruz. Tateou a cabeceira da cama atrás do terço.
Encontrando-o, mais do que depressa se pôs a debulhá-lo novamente.<o:p></o:p></div>
<div style="margin-bottom: 6.0pt; margin-left: 0cm; margin-right: 0cm; margin-top: 6.0pt; mso-line-height-alt: 11.25pt; text-align: justify; vertical-align: baseline;">
-
Deus me livre mãe! Eu não! – Maria puxou a coberta até o queixo apoiado sobre
os joelhos e ficou a esperar. Sabia que alguma coisa estranha estava
acontecendo. Daí a pouco novo uivo, dessa vez, mais próximo e mais forte, mas
ainda lamentoso e longo.<o:p></o:p></div>
<div style="margin-bottom: 6.0pt; margin-left: 0cm; margin-right: 0cm; margin-top: 6.0pt; mso-line-height-alt: 11.25pt; text-align: justify; vertical-align: baseline;">
- É
um lobisomem, mãe! – Apostou Maria num fio de voz, continuando a bater queixo.<o:p></o:p></div>
<div style="margin-bottom: 6.0pt; margin-left: 0cm; margin-right: 0cm; margin-top: 6.0pt; mso-line-height-alt: 11.25pt; text-align: justify; vertical-align: baseline;">
-
Será?! Valei-me Nossa Senhora! E Dezinho que não chega!<o:p></o:p></div>
<div style="margin-bottom: 6.0pt; margin-left: 0cm; margin-right: 0cm; margin-top: 6.0pt; mso-line-height-alt: 11.25pt; text-align: justify; vertical-align: baseline;">
Ficaram
mudas e imóveis. Não tinham coragem de mover um músculo. Apenas Dona Raimunda
que movia os lábios <st1:personname productid="em ora ̄o. Maria" w:st="on">em
oração. Maria</st1:personname> procurava evitar até os pensamentos com medo de
ser adivinhada. Começaram a ouvir passos. Os passos pareciam rodear todo o
terreiro e quando se aproximavam da casa, paravam na porta da frente. Ouviram
também o farejar que parecia ser de um cão. Maria ouvia as pancadas do próprio
coração e tinha a sensação de este ia lhe sair pela boca. De repente o animal,
ou fosse lá o que fosse, começou a arranhar a porta.<o:p></o:p></div>
<div style="margin-bottom: 6.0pt; margin-left: 0cm; margin-right: 0cm; margin-top: 6.0pt; mso-line-height-alt: 11.25pt; text-align: justify; vertical-align: baseline;">
-
Meu Deus, o que será isso, meu Jesus! – Apelou Dona Raimunda. Olhou para Maria
e viu que esta estava pálida e imóvel como uma estátua. Sacudiu-a.<o:p></o:p></div>
<div style="margin-bottom: 6.0pt; margin-left: 0cm; margin-right: 0cm; margin-top: 6.0pt; mso-line-height-alt: 11.25pt; text-align: justify; vertical-align: baseline;">
-
Calma Maria! Não há de ser nada! – Dona Raimunda, também apavorada, tentava
acalmar a pobre da menina.<o:p></o:p></div>
<div style="margin-bottom: 6.0pt; margin-left: 0cm; margin-right: 0cm; margin-top: 6.0pt; mso-line-height-alt: 11.25pt; text-align: justify; vertical-align: baseline;">
Começaram
a ouvir ao longe um latido de cachorro, só que um latido familiar.<o:p></o:p></div>
<div style="margin-bottom: 6.0pt; margin-left: 0cm; margin-right: 0cm; margin-top: 6.0pt; mso-line-height-alt: 11.25pt; text-align: justify; vertical-align: baseline;">
-É
o latido de Tulipa, não é? – Dona Raimunda se levantou indo em direção à
janela. Maria saltou sobre ela:<o:p></o:p></div>
<div style="margin-bottom: 6.0pt; margin-left: 0cm; margin-right: 0cm; margin-top: 6.0pt; mso-line-height-alt: 11.25pt; text-align: justify; vertical-align: baseline;">
-
Não abre mãe! Não abre! – Seus dentes chocavam-se uns com os outros incontrolavelmente.<o:p></o:p></div>
<div style="margin-bottom: 6.0pt; margin-left: 0cm; margin-right: 0cm; margin-top: 6.0pt; mso-line-height-alt: 11.25pt; text-align: justify; vertical-align: baseline;">
-
Mas menina, deve ser teu pai que vem chegando! Tu não ta ouvindo o latido de
Tulipa?– Vendo o terror da filha a mulher concordou – Está bem. Se for teu pai
quando ele chegar ele chama na porta.<o:p></o:p></div>
<div style="margin-bottom: 6.0pt; margin-left: 0cm; margin-right: 0cm; margin-top: 6.0pt; mso-line-height-alt: 11.25pt; text-align: justify; vertical-align: baseline;">
O
latido da cachorrinha se fez ouvir mais perto e mais perto, mas logo em seguida
ouviram apenas um ganido baixinho depois, o silêncio.<o:p></o:p></div>
<div style="margin-bottom: 6.0pt; margin-left: 0cm; margin-right: 0cm; margin-top: 6.0pt; mso-line-height-alt: 11.25pt; text-align: justify; vertical-align: baseline;">
Ficaram
ali sentadas na cama orando por mais algum tempo até que Maria deu outro pulo
da cama assustada.<o:p></o:p></div>
<div style="margin-bottom: 6.0pt; margin-left: 0cm; margin-right: 0cm; margin-top: 6.0pt; mso-line-height-alt: 11.25pt; text-align: justify; vertical-align: baseline;">
-
Que foi agora menina! O bicho não uivou não!<o:p></o:p></div>
<div style="margin-bottom: 6.0pt; margin-left: 0cm; margin-right: 0cm; margin-top: 6.0pt; mso-line-height-alt: 11.25pt; text-align: justify; vertical-align: baseline;">
- A
senhora não ouviu? – Conseguiu dizer tentando trincar os dentes.<o:p></o:p></div>
<div style="margin-bottom: 6.0pt; margin-left: 0cm; margin-right: 0cm; margin-top: 6.0pt; mso-line-height-alt: 11.25pt; text-align: justify; vertical-align: baseline;">
-
Não ouvi o quê, menina? – Perguntou apurando os ouvidos.<o:p></o:p></div>
<div style="margin-bottom: 6.0pt; margin-left: 0cm; margin-right: 0cm; margin-top: 6.0pt; mso-line-height-alt: 11.25pt; text-align: justify; vertical-align: baseline;">
-
Um barulho...de pano rasgado... – E como quem lembra de alguma coisa Maria
começou a chorar.<o:p></o:p></div>
<div style="margin-bottom: 6.0pt; margin-left: 0cm; margin-right: 0cm; margin-top: 6.0pt; mso-line-height-alt: 11.25pt; text-align: justify; vertical-align: baseline;">
Dona
Raimunda já alarmada, pôs-se a sacudir a menina:<o:p></o:p></div>
<div style="margin-bottom: 6.0pt; margin-left: 0cm; margin-right: 0cm; margin-top: 6.0pt; mso-line-height-alt: 11.25pt; text-align: justify; vertical-align: baseline;">
-
Que diabos tu tem, Maria? Ta ficando doida? Por que ta chorando agora?<o:p></o:p></div>
<div style="margin-bottom: 6.0pt; margin-left: 0cm; margin-right: 0cm; margin-top: 6.0pt; mso-line-height-alt: 11.25pt; text-align: justify; vertical-align: baseline;">
Maria
se afastou e se encolheu num canto do quarto.<o:p></o:p></div>
<div style="margin-bottom: 6.0pt; margin-left: 0cm; margin-right: 0cm; margin-top: 6.0pt; mso-line-height-alt: 11.25pt; text-align: justify; vertical-align: baseline;">
- O
meu vestido,... mãe! Aquele vermelho... de florzinha amarela! O... que eu...
mais gosto.<o:p></o:p></div>
<div style="margin-bottom: 6.0pt; margin-left: 0cm; margin-right: 0cm; margin-top: 6.0pt; mso-line-height-alt: 11.25pt; text-align: justify; vertical-align: baseline;">
- E
o que é que tem o vestido menina? – Perguntou a mãe sem entender mais nada.<o:p></o:p></div>
<div style="margin-bottom: 6.0pt; margin-left: 0cm; margin-right: 0cm; margin-top: 6.0pt; mso-line-height-alt: 11.25pt; text-align: justify; vertical-align: baseline;">
Maria
com medo da reação da mãe, pôs-se a gaguejar ainda mais:<o:p></o:p></div>
<div style="margin-bottom: 6.0pt; margin-left: 0cm; margin-right: 0cm; margin-top: 6.0pt; mso-line-height-alt: 11.25pt; text-align: justify; vertical-align: baseline;">
-
Eu sei.... que é pecado.... A senhora me...avisou. Mas eu lavei.... o vestido
hoje... botei pra secar... na cerca de arame... e esqueci de pegar.... Parece
que... o bicho rasgou ele.<o:p></o:p></div>
<div style="margin-bottom: 6.0pt; margin-left: 0cm; margin-right: 0cm; margin-top: 6.0pt; mso-line-height-alt: 11.25pt; text-align: justify; vertical-align: baseline;">
A
mãe deu-lhe um cocorote na cabeça praguejando:<o:p></o:p></div>
<div style="margin-bottom: 6.0pt; margin-left: 0cm; margin-right: 0cm; margin-top: 6.0pt; mso-line-height-alt: 11.25pt; text-align: justify; vertical-align: baseline;">
-
Mas menina, tu ta doida? Tu não sabe que não pode trabalhar dia de hoje, trem
ruim! – Benzeu-se pela imprecação. - Bem feito, pra tu, que ficou sem o
vestido! Teu pai vai te esfolar o lombo quando souber, tu vai ver! É bom se
preparar!<o:p></o:p></div>
<div style="margin-bottom: 6.0pt; margin-left: 0cm; margin-right: 0cm; margin-top: 6.0pt; mso-line-height-alt: 11.25pt; text-align: justify; vertical-align: baseline;">
Maria
chorava baixinho penalizada pelo vestido e por medo do que ela tinha quase
certeza. Com tudo isso a noite passou elas não mais dormiram, e o dia
amanheceu. Dona Raimunda foi pra cozinha fazer o café e Maria ficou de levar o
urinol para despejar fora a urina da noite anterior. Com medo de sair no
quintal, da janela da sala de dentro, jogou fora a urina. Sua mãe vendo deu-lhe
uns tabefes:<o:p></o:p></div>
<div style="margin-bottom: 6.0pt; margin-left: 0cm; margin-right: 0cm; margin-top: 6.0pt; mso-line-height-alt: 11.25pt; text-align: justify; vertical-align: baseline;">
-
Tu toma vergonha! O quintal vai ficar numa catinga só! Ta com medo do
lobisomem? Se foi ele, já foi embora sua boba, o sol já saiu.<o:p></o:p></div>
<div style="margin-bottom: 6.0pt; margin-left: 0cm; margin-right: 0cm; margin-top: 6.0pt; mso-line-height-alt: 11.25pt; text-align: justify; vertical-align: baseline;">
Depois
de alguns minutos seu Dezinho chamou na porta. Dona Raimunda correu a abri-la.<o:p></o:p></div>
<div style="margin-bottom: 6.0pt; margin-left: 0cm; margin-right: 0cm; margin-top: 6.0pt; mso-line-height-alt: 11.25pt; text-align: justify; vertical-align: baseline;">
-
Bom dia mulher! Bom dia Maria! – Cumprimentou-as entrando casa adentro indo na
direção da cozinha. Tulipa o acompanhava – To doido por um café. Já coou?<o:p></o:p></div>
<div style="margin-bottom: 6.0pt; margin-left: 0cm; margin-right: 0cm; margin-top: 6.0pt; mso-line-height-alt: 11.25pt; text-align: justify; vertical-align: baseline;">
Entraram
todos para a cozinha. Dona Raimunda depositou na mesa o bule, as xícaras e um
prato com bolo frito e beiju. Maria ficou olhando o pai com a cara assustada.
Este não percebeu e abriu a boca para morder um beiju, foi aí que Maria viu nos
dentes dele, pedaços pequenos de pano vermelho e amarelo.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
Caetité, maio/junho de 1982.<o:p></o:p></div>
Luciene Aguiarhttp://www.blogger.com/profile/02679943218017441100noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-5817950589098488914.post-8031356119397307352010-09-15T07:53:00.000-07:002013-03-24T08:23:47.280-07:00A SESTA NUM DIA DE SOL<br />
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-indent: 54.0pt;">
<br /></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify; text-indent: 54.0pt;">
Maria olhava para aquele ambiente amarelo-cinza a sua frente. Passava um
pouco do meio dia e ela sentia aquela preguiça que sempre lhe tomava o corpo
depois do almoço. Estava sentada, como sempre fazia naquele horário, debaixo de
um velho pé de cedro em frente à sua casa. O tempo estava quente e abafado, mas
vez ou outra a brisa balançava as altas galhas da árvore e lhe refrescava o
calor. A claridade do espaço amarelo-cinza agredia-lhe os olhos. Não se via
nada verde. Os poucos tons de ocre esverdeado que iam substituindo o verde
deixado pela chuva, também já haviam sido devorados pelo amarelo-cinza. Junto
com a sensação de exaustão e abandono causada por essa tonalidade e pela
temperatura quente e abafada, Maria sentia uma espécie de secura e esvaziamento
por dentro que lhe davam a impressão, de que a qualquer momento, ela iria
deixar de existir. Olhou o céu. O azul pendia mais pro cinza-arroxeado: uma cor
intensa, agressiva e opressora. Nenhuma nuvem. A claridade e intensidade
daquela cor parada, morta lhe fizeram franzir os olhos. Maria bocejou. Suas
pálpebras pesavam e a agradável sonolência dominava cada vez mais o seu corpo.
Olhou e sorriu para os pequenos arbustos secos e retorcidos que se espalhavam
pelo terreiro de sua casa. <o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify; text-indent: 54.0pt;">
Vez ou outra ouvia os movimentos da sua mãe dentro de casa. Naquele
horário do dia Maria sentia-se quase particularmente feliz. Era um momento que
ninguém a perturbava. Era um momento em que ela podia ficar sozinha, dedicar-se
a si mesma e remexer em suas memórias, em suas idéias e em seus sonhos. Era um
momento só seu onde ela podia ser ela mesma ou quem quisesse. Depois desse
momento de autodedicação, Maria voltaria para uma rotina menos agradável: lavar
a louça, varrer os terreiros da casa, dar comida aos porcos e lavar algumas
peças de roupa.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify; text-indent: 54.0pt;">
Não mais resistindo ao sono Maria passou a mão pelo chão afastando alguns
galhos caídos e se acomodou deitando-se. Suas pálpebras se fecharam e ela
dormiu. Dormiu o seu sagrado sono de depois do almoço. Mais tarde seria
acordada pela cadelinha do seu pai. Ela lhe lamberia as faces e se deitaria ao
seu lado até que se levantasse e fosse para dentro de casa cuidar das tarefas. <o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify; text-indent: 54.0pt;">
Maria sonhou. Um sonho simples sem grandes pretensões: sonhou que a
cadelinha do seu pai, era sua irmã, e no seu sonhou verificou que eram muito
parecidas. No sonho, brincavam como faziam acordadas, à margem do riacho seco.
Brincavam de cobrir com os dedos as inúmeras linhas deixadas pelas rachaduras da
terra seca. Maria ficava encantada com aquelas rachaduras, pois formavam
desenhos engraçados e estranhos. Tulipa
– a cadelinha de seu pai - atravessava o riacho sobre as linhas e Maria
admirava as voltas que seu corpo dava para conseguir acompanhar aqueles
desenhos. A chuva era por demais boa e esperada por todos, trazia comida e
água, mas levavam embora aquelas formas mágicas que faziam com que elas
descobrissem figuras misteriosas. O consolo era que com a próxima seca, outros
desenhos estariam lá para serem descobertos por elas. Maria não entendia como
ela conseguia ver naquelas linhas tantas coisas conhecidas: vacas, galinhas,
árvores, porcos. Acreditava que algum ser misterioso desenhava aquelas coisas
para ela e Tulipa descobrirem. Aquilo era um mistério para Maria.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify; text-indent: 54.0pt;">
Acordou com Tulipa lhe lambendo o rosto. Sorriu para ela e a abraçou.
Espreguiçou-se, olhou para o céu e levantou-se para mais uma tarde como todas
as outras.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify; text-indent: 54.0pt;">
<br /></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify; text-indent: 54.0pt;">
Caetité, abril/maio de 1982.<o:p></o:p></div>
Luciene Aguiarhttp://www.blogger.com/profile/02679943218017441100noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-5817950589098488914.post-48801684909205691532010-07-02T07:49:00.000-07:002013-03-24T07:50:11.640-07:00A CACHORRINHA SEGURANDO VELA<br />
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify;">
<br /></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify; text-indent: 54.0pt;">
Maria estava sentada no banquinho na sala de estar acompanhada da mãe.
Seu pai caminhava para lá e para cá na calçada em frente à casa. De cinco em
cinco minutos, mais ou menos, Maria se levantava e espichava o pescoço para o terreiro.
Dona Raimunda, inquieta, alisava incansavelmente, a saia do vestido. <o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify; text-indent: 54.0pt;">
- Para menina! Fica quieta! Para com esse senta e levanta! Ta me
agoniando!<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify; text-indent: 54.0pt;">
Estavam todos com as melhores roupas e perfumados com água de cheiro. <o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify; text-indent: 54.0pt;">
Seu Dezinho num vai-e-vem sem fim soltava, uma atrás da outra, baforadas
do seu cigarro de fumo bruto envolto em palha seca de milho. Já estava
escurecendo. Olhou no relógio e constatou que faltavam poucos minutos para o
horário marcado. Olhou novamente para a estrada e avistou ao longe o rapaz
esperado, montado no lombo de um cavalo, que àquela distância, dava para
perceber que era manco. “Inda vem montado num cavalo ruim! Ai ai... Isso não
vai dar certo!”. Pensou.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify; text-indent: 54.0pt;">
O rapaz, de mais ou menos uns 23 anos, saltou do cavalo, tirou o chapéu e
se aproximou vagaroso de seu Dezinho que não fazia a menor questão de esconder
a cara feia.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify; text-indent: 54.0pt;">
- Boa tarde seu Dezinho! – Estendeu o rapaz, a mão suada e calosa. Seu
Dezinho esticou a sua e num mal roçar, enfiou-a no bolso imediatamente. Olhou o
cavalo e disse:<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify; text-indent: 54.0pt;">
- Esse teu cavalo ta mancando! Machucou a pata?<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify; text-indent: 54.0pt;">
- É. Pa...rece que sim! – o rapaz forçou um sorriso de desculpa. Devia
ter vindo com um cavalo melhor. Pensou.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify; text-indent: 54.0pt;">
- Mas tu tem outro, ou só esse?<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify; text-indent: 54.0pt;">
- Tenho. Tenho sim!<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify; text-indent: 54.0pt;">
- Vamos entrando!- resmungou balançando a cabeça sem muito acreditar no
rapaz.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify; text-indent: 54.0pt;">
Maria quando avistou ao longe o visitante, começou a tremer e a suar.
Dona Raimunda pôs-se de pé e ficou a esperar. Beliscou Maria para que ela
fizesse o mesmo. Esta, sentindo o coração bater forte e os joelhos moles, ficou
em pé a pulso. Encostou-se na parede temendo cair. <o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify; text-indent: 54.0pt;">
Seu Dezinho surgiu na sala, acompanhado do rapaz que trazia nas faces
intenso rubor. Convidou-o a sentar. Na sala, além do banquinho havia mais três
cadeiras e o rapaz, nervoso, trêmulo, escolheu uma de couro já bastante velha,
mas ainda muito resistente. Seu Dezinho, imediatamente, trouxe para cima dos
olhos todo o couro da testa, pois naquela cadeira a única pessoa que se sentava
era ele. Aquele velho objeto era de estimação, quase tanto quanto Tulipa sua
cadelinha, pois era uma cadeira que pertencera a seu bisavô e foi passando de
pai para filho. Não teve, porém coragem de pedir ao rapaz para se sentar <st1:personname productid="em outra. Todos" w:st="on">em outra. Todos</st1:personname>
sentados, o silêncio tombou. Os minutos começaram a passar, até que dona
Raimunda ofereceu um café e levantando-se saiu pros fundos da casa. Maria,
querendo respirar um pouco e tirar do peito aquele peso que ali se alojara,
acompanhou a mãe num passo apressado.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify; text-indent: 54.0pt;">
Seu Dezinho se vendo a sós com o moço, perguntou de chofre:<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify; text-indent: 54.0pt;">
- Quais são suas intenções com minha filha? – Perguntou olhando firme
para os olhos do rapaz.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify; text-indent: 54.0pt;">
O pobre moço, gaguejando com muito custo, conseguiu dizer:<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify; text-indent: 54.0pt;">
- As melhores... seu Dezinho, as melhores...<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify; text-indent: 54.0pt;">
- Isso não é resposta. Quero saber se é pra casar ou pra enrolar. Porque
filha minha, cabra nenhum enrola, não!<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify; text-indent: 54.0pt;">
O moço passou a mão na cabeça, agoniado.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify; text-indent: 54.0pt;">
- Claro... claro que é pra... casar. Eu... gosto muito... da sua filha.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify; text-indent: 54.0pt;">
- Então tá bom! Mas tu só vai botar a mão nela depois de casado. To
avisando!<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify; text-indent: 54.0pt;">
- Certo. Claro... nunca pensei... de outro jeito. Quero que a... nossa
união... seja abençoada por... Deus...<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify; text-indent: 54.0pt;">
- E por mim! – Mirou o rapaz de cima a baixo, pousou os olhos no centro
do corpo do moço e disse: Se tu botar a mão nela antes de casar, te aviso: Tu
não será homem nunca mais – Fez um gesto com a mão como quem corta alguma coisa.
O rapaz engoliu o pouco de saliva que restava em sua boca seca, e mentalmente
elevou uma prece a Deus.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify; text-indent: 54.0pt;">
Seu Dezinho espichando o pescoço na direção da porta gritou com aquela
voz, dificilmente compreensível para os humanos.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify; text-indent: 54.0pt;">
- Maria! Chegue aqui!<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify; text-indent: 54.0pt;">
No mesmo instante, Maria surgiu cabisbaixa, com as faces rubras.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify; text-indent: 54.0pt;">
- Me chamou pai?<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify; text-indent: 54.0pt;">
- Chamei. – Olhou para o rapaz, para ela e continuou - O moço aqui me
pediu tua mão. Vocês vão se conhecer um pouco e depois vamos marcar a data do
casamento.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify; text-indent: 54.0pt;">
Maria sorriu com a cabeça enfiada no peito.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify; text-indent: 54.0pt;">
-Senta aí e pode conversar!<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify; text-indent: 54.0pt;">
Maria sentou-se no banquinho, juntou as pernas e puxou a saia do vestido
para cobrir os joelhos. Ainda de cabeça baixa, vagarosamente, levantou os olhos
na direção do rapaz e sentindo sobre si os olhos dele, imediatamente recolheu
os seus por sob as pálpebras. Olhou na direção do pai e viu que este olhava
para um e para o outro enquanto acendia outro cigarro. O tufo de fumaça encheu
a sala e o odor do fumo queimado penetrou as narinas de Maria dificultando-lhe
ainda mais a respiração.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify; text-indent: 54.0pt;">
Dona Raimunda chegou trazendo na bandeja quatro xícaras pequenas
esmaltadas com a cor verde e um bule de igual material. Colocando o serviço
numa mesinha encostada a uma parede, onde havia uma quantidade razoável de
quadros de santos e alguns retratos da família, serviu o café. Serviu primeiro
ao rapaz, depois a Dezinho, à Maria. Em seguida pegou a sua xícara e se sentou
numa cadeira próxima ao marido. Beberam <st1:personname productid="em sil↑ncio. Ouviam-se" w:st="on">em silêncio. Ouviam-se</st1:personname> apenas os chupados
que seu Dezinho dava em sua xícara. Depois de alguns minutos ela o cutucou
discretamente chamando-o para saírem dali e deixarem os dois jovens a sós. Ele
olhou-a assustado:<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify; text-indent: 54.0pt;">
- Quê que tu quer?<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify; text-indent: 54.0pt;">
- Quero falar uma coisa! Vamos lá na cozinha –sussurrou<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify; text-indent: 54.0pt;">
- Como é que eu deixo os dois aqui... – disse ele numa voz estridente,
mas acreditando sussurrar.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify; text-indent: 54.0pt;">
- Vem cá homem! Deixe de conversa! – A velha tomou-lhe a mão e se
levantou. Ele seguiu-a resmungando. Chegando na cozinha ele estacou e disse: <o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify; text-indent: 54.0pt;">
- Já sei! Cadê Tulipa? Tulipa! Oh Tulipa!<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify; text-indent: 54.0pt;">
A cachorrinha surgiu abanando o rabo e cheirando-lhe os pés encardidos.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify; text-indent: 54.0pt;">
Ele se agachou e cochichou alguma coisa no ouvido da cadela. Esta,
obediente, seguiu em direção à sala e lá entrando se deitou a um canto e pôs-se
a encarar o casal que agora se encontrava sentado no mesmo banco.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify; text-indent: 54.0pt;">
- O que tu cochichou no ouvido da cachorra Dezinho? – Perguntou dona
Raimunda<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify; text-indent: 54.0pt;">
- Já que eu não posso ficar lá botando sentido nos dois, por causa da tua
implicância, mandei Tulipa vigiar os dois pra mim.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify; text-indent: 54.0pt;">
Dona Raimunda soltou uma gargalhada.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify; text-indent: 54.0pt;">
- Tu já ta é caducando! Onde já se viu uma cachorra botar sentido num
casal Dezinho! Tu é besta mesmo! O que esses dois pode fazer lá na sala com a
gente aqui, homem?! – Sacudia o corpo com o riso – E tu acha que Tulipa vai te
contar o que eles estão fazendo, o que estão conversando?<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify; text-indent: 54.0pt;">
- Ela me conta sim! Tulipa não é uma cachorra como as outras, tu sabe
disso! E pare de ficar relinchando!<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify; text-indent: 54.0pt;">
- Dezinho, larga mão de ser besta! Tu não lembra que a gente ficava lá na
casa de pai e que não aconteceu nada! Eles precisam conversar sozinhos pra se
conhecer. Com a gente foi assim também. E eu casei pura!<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify; text-indent: 54.0pt;">
- Porque eu tinha medo do teu pai! – Ele fez uma cara que para ele era
uma cara de riso. Pois ele nunca ria, vivia sempre zangado.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify; text-indent: 54.0pt;">
Dona Raimunda riu e concluiu:<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify; text-indent: 54.0pt;">
- Vamos deixar os dois lá quietos. Nossa filha já tá passando da idade de
casar. Tá com mais de dezenove e, além do mais, coitada, ela puxou a cara da
tua mãe, então temos que dar graças a Deus por esse rapaz ter se engraçado com
ela.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify; text-indent: 54.0pt;">
- Tu não perde ocasião de dizer que mãe era feia!<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify; text-indent: 54.0pt;">
- Tua mãe, Dezinho, minha finada sogra que Deus a queira ter para sempre
no Reino da Glória, amém!– benzeu-se olhando pras telhas da cozinha – não era
feia. Ela era medonha!<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify; text-indent: 54.0pt;">
- Humff! – Rosnou. Depois encarando-a com a cara ainda mais fechada
concluiu - Vamos deixar mãe quieta lá com Deus! – Benzeu-se.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify; text-indent: 54.0pt;">
<i>Ou com o cão</i> – pensou dona
Raimunda<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify; text-indent: 54.0pt;">
Na sala o casal ensaiava uma tímida conversa. Ele pegou a mão de Maria na
sua e pressionou-a levemente. Ela estremeceu ao sentir aquele contato caloso e
suado. Tulipa no mesmo instante ergueu a cabeça e levantou as orelhas.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify; text-indent: 54.0pt;">
- Parece que ela não gostou que eu peguei na tua mão. – Observou o rapaz
intrigado.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify; text-indent: 54.0pt;">
- Liga não. Foi pai que mandou ela vigiar nóis. Ele pensa que ela sabe
das coisas... e que pode falar com ele...<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify; text-indent: 54.0pt;">
- E ela sabe? Vai ver ele entende a fala dela...<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify; text-indent: 54.0pt;">
- Tu já viu cachorro falar? – Perguntou Maria olhando-o encantada. <o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify; text-indent: 54.0pt;">
- É, nunca vi – admitiu encarando Tulipa. –Mas já pensou se ele entende o
que ela fala...! Vai ver ele tem parte com o coisa ruim... E se ela contar?<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify; text-indent: 54.0pt;">
Maria já um tanto solta se sacudiu de rir. Olhou para Tulipa e piscou um
olho.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify; text-indent: 54.0pt;">
Tulipa retribuiu a piscada, olhou novamente para ele sorriu e fechou os
olhos. Ia colaborar com Maria, pois sentiu que o rapaz tinha um bom coração.<o:p></o:p></div>
Luciene Aguiarhttp://www.blogger.com/profile/02679943218017441100noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-5817950589098488914.post-85389899395721081402010-03-19T10:21:00.000-07:002010-03-19T10:23:16.757-07:00ROMUALDO, O PEREGRINO.<span class="Apple-style-span" style="color: grey; font-family: Arial, Verdana, sans-serif; font-size: 12px; line-height: 15px;"></span><br />
<div style="border-bottom-width: 0px; border-color: initial; border-left-width: 0px; border-right-width: 0px; border-style: initial; border-top-width: 0px; margin-bottom: 1ex; margin-left: 0px; margin-right: 0px; margin-top: 1ex; outline-color: initial; outline-style: initial; outline-width: 0px; padding-bottom: 0px; padding-left: 0px; padding-right: 0px; padding-top: 0px; text-align: justify; vertical-align: baseline;"><span class="Apple-style-span" style="font-family: Verdana, sans-serif;"><span class="Apple-style-span" style="font-size: small;">Texto escrito em julho de 2009.</span></span><br />
<span class="Apple-style-span" style="font-family: Verdana, sans-serif;"><span class="Apple-style-span" style="font-size: small;"><br />
</span></span><br />
<span class="Apple-style-span" style="font-family: Verdana, sans-serif;"><span class="Apple-style-span" style="font-size: small;">A casa, que àquela hora da tarde estava com todas as portas e janelas abertas, abrigava uma quantidade enorme de gente. Ao longo das paredes das duas pequenas salas estavam distribuídas cadeiras e bancos, todos ocupados com os visitantes. Havia um maior número em pé, não só dentro da casa, como no terreiro da frente e do fundo. Muitos sentados nas calçadas, bebendo aguardente, fumando, tomando café e comendo bolacha palito, que vez ou outra, algumas mulheres serviam. No centro da sala principal havia dois bancos encostados um ao outro, cobertos com um lençol branco. Ali seria descansado o caixão do defunto que a empresa funerária iria dali a poucos minutos, trazer. A viúva, já um tanto avançada em anos, trazia o corpo trêmulo envolto num longo vestido preto e a cabeça num xale de indefinida cor. As amigas seguravam seu pranto, consolando-a com abraços, tapinhas nas costas e muitas xícaras de chá calmante. Todas em seus vestidos de velório e tendo, constantemente, as mãos ocupadas pelos terços que iriam debulhar quando o finado chegasse. A ladainha, pronta a saltar-lhes dos lábios, deixava-as impacientes com o corpo que tardava a chegar. Esses momentos, naqueles confins do sertão, eram eventos onde elas podiam exercitar seus gogós na cantoria e reafirmar, perante Deus, o status de boas cristãs. Os filhos, muitos, se apoiavam encorujados às paredes já encardidas e rotas, que deixavam à vista, aqui e ali, tijolos de adobão.</span></span></div><div style="border-bottom-width: 0px; border-color: initial; border-left-width: 0px; border-right-width: 0px; border-style: initial; border-top-width: 0px; margin-bottom: 0px; margin-left: 0px; margin-right: 0px; margin-top: 0px; outline-color: initial; outline-style: initial; outline-width: 0px; padding-bottom: 0px; padding-left: 0px; padding-right: 0px; padding-top: 0px; text-align: justify; vertical-align: baseline;"></div><div style="border-bottom-width: 0px; border-color: initial; border-left-width: 0px; border-right-width: 0px; border-style: initial; border-top-width: 0px; margin-bottom: 1ex; margin-left: 0px; margin-right: 0px; margin-top: 1ex; outline-color: initial; outline-style: initial; outline-width: 0px; padding-bottom: 0px; padding-left: 0px; padding-right: 0px; padding-top: 0px; text-align: justify; vertical-align: baseline;"><span class="Apple-style-span" style="font-family: Verdana, sans-serif;"><span class="Apple-style-span" style="font-size: small;">Ao longe se ouviu um ronco de motor e todos viram, envolto numa gigante nuvem de poeira, o rabecão preto brilhando à luz do sol da tarde.</span></span></div><div style="border-bottom-width: 0px; border-color: initial; border-left-width: 0px; border-right-width: 0px; border-style: initial; border-top-width: 0px; margin-bottom: 0px; margin-left: 0px; margin-right: 0px; margin-top: 0px; outline-color: initial; outline-style: initial; outline-width: 0px; padding-bottom: 0px; padding-left: 0px; padding-right: 0px; padding-top: 0px; text-align: justify; vertical-align: baseline;"></div><div style="border-bottom-width: 0px; border-color: initial; border-left-width: 0px; border-right-width: 0px; border-style: initial; border-top-width: 0px; margin-bottom: 1ex; margin-left: 0px; margin-right: 0px; margin-top: 1ex; outline-color: initial; outline-style: initial; outline-width: 0px; padding-bottom: 0px; padding-left: 0px; padding-right: 0px; padding-top: 0px; text-align: justify; vertical-align: baseline;"><span class="Apple-style-span" style="font-family: Verdana, sans-serif;"><span class="Apple-style-span" style="font-size: small;">Mais cedo na cidade, na empresa funerária, os últimos preparativos com o corpo estavam sendo feitos. Romualdo, um dos responsáveis pelo despacho dos defuntos, verificava o endereço de cada um. Concluiu que tudo estava em ordem e providenciou o embarque. Naquele dia houve pouco movimento, apenas três mortes lhes requisitaram os serviços. Entrou no rabecão que iria levar o presunto para a roça mais distante. Gostava de cuidar pessoalmente de alguns casos, pois prezava muito seu emprego, já que na maioria das vezes, se metia sem querer, em situações que lhe impediam a permanência num trabalho por muito tempo. Considerava-se um azarado nesse aspecto, pois já perdera a conta de por quantos empregos peregrinara. Com aquele, até o momento, estava dando tudo certo e o trabalho, apesar de ser um pouco desagradável, – ficar às voltas com finados – não era dos piores. Até que estava gostando.</span></span></div><div style="border-bottom-width: 0px; border-color: initial; border-left-width: 0px; border-right-width: 0px; border-style: initial; border-top-width: 0px; margin-bottom: 0px; margin-left: 0px; margin-right: 0px; margin-top: 0px; outline-color: initial; outline-style: initial; outline-width: 0px; padding-bottom: 0px; padding-left: 0px; padding-right: 0px; padding-top: 0px; text-align: justify; vertical-align: baseline;"></div><div style="border-bottom-width: 0px; border-color: initial; border-left-width: 0px; border-right-width: 0px; border-style: initial; border-top-width: 0px; margin-bottom: 1ex; margin-left: 0px; margin-right: 0px; margin-top: 1ex; outline-color: initial; outline-style: initial; outline-width: 0px; padding-bottom: 0px; padding-left: 0px; padding-right: 0px; padding-top: 0px; text-align: justify; vertical-align: baseline;"><span class="Apple-style-span" style="font-family: Verdana, sans-serif;"><span class="Apple-style-span" style="font-size: small;">Ele e o motorista, de longe avistaram o povaréu que se agrupava em frente à casa. Romualdo já sabia de antemão tudo o que ia acontecer: a mulher desmaiando, os filhos gritando, os compadres e as comadres ressaltando, em meio a lágrimas, - muitas de crocodilo - qualidades que nunca antes foram notadas no defunto. Quase todo mundo depois que morre vira santo, pelo menos por algum tempo, concluíra Romualdo em suas muitas freqüências a velórios.</span></span></div><div style="border-bottom-width: 0px; border-color: initial; border-left-width: 0px; border-right-width: 0px; border-style: initial; border-top-width: 0px; margin-bottom: 0px; margin-left: 0px; margin-right: 0px; margin-top: 0px; outline-color: initial; outline-style: initial; outline-width: 0px; padding-bottom: 0px; padding-left: 0px; padding-right: 0px; padding-top: 0px; text-align: justify; vertical-align: baseline;"></div><div style="border-bottom-width: 0px; border-color: initial; border-left-width: 0px; border-right-width: 0px; border-style: initial; border-top-width: 0px; margin-bottom: 1ex; margin-left: 0px; margin-right: 0px; margin-top: 1ex; outline-color: initial; outline-style: initial; outline-width: 0px; padding-bottom: 0px; padding-left: 0px; padding-right: 0px; padding-top: 0px; text-align: justify; vertical-align: baseline;"><span class="Apple-style-span" style="font-family: Verdana, sans-serif;"><span class="Apple-style-span" style="font-size: small;">Entraram com o corpo e a viúva pôs uma mão no peito e, se certificando de que as amigas estavam por perto, se preparou para o desmaio. Não chegou a cair, pois braços, mais do que ligeiros, a apoiaram. Respirou fundo e as amigas a acompanharam até o caixão que agora já se encontrava sobre os dois bancos. Romualdo desparafusou a tampa e lentamente a ergueu. Ouviu-se por toda a sala:</span></span></div><div style="border-bottom-width: 0px; border-color: initial; border-left-width: 0px; border-right-width: 0px; border-style: initial; border-top-width: 0px; margin-bottom: 0px; margin-left: 0px; margin-right: 0px; margin-top: 0px; outline-color: initial; outline-style: initial; outline-width: 0px; padding-bottom: 0px; padding-left: 0px; padding-right: 0px; padding-top: 0px; text-align: justify; vertical-align: baseline;"></div><div style="border-bottom-width: 0px; border-color: initial; border-left-width: 0px; border-right-width: 0px; border-style: initial; border-top-width: 0px; margin-bottom: 1ex; margin-left: 0px; margin-right: 0px; margin-top: 1ex; outline-color: initial; outline-style: initial; outline-width: 0px; padding-bottom: 0px; padding-left: 0px; padding-right: 0px; padding-top: 0px; text-align: justify; vertical-align: baseline;"><span class="Apple-style-span" style="font-family: Verdana, sans-serif;"><span class="Apple-style-span" style="font-size: small;">- Oohh! Meu Deus que horror!</span></span></div><div style="border-bottom-width: 0px; border-color: initial; border-left-width: 0px; border-right-width: 0px; border-style: initial; border-top-width: 0px; margin-bottom: 0px; margin-left: 0px; margin-right: 0px; margin-top: 0px; outline-color: initial; outline-style: initial; outline-width: 0px; padding-bottom: 0px; padding-left: 0px; padding-right: 0px; padding-top: 0px; text-align: justify; vertical-align: baseline;"></div><div style="border-bottom-width: 0px; border-color: initial; border-left-width: 0px; border-right-width: 0px; border-style: initial; border-top-width: 0px; margin-bottom: 1ex; margin-left: 0px; margin-right: 0px; margin-top: 1ex; outline-color: initial; outline-style: initial; outline-width: 0px; padding-bottom: 0px; padding-left: 0px; padding-right: 0px; padding-top: 0px; text-align: justify; vertical-align: baseline;"><span class="Apple-style-span" style="font-family: Verdana, sans-serif;"><span class="Apple-style-span" style="font-size: small;">- O que aconteceu com o compadre?</span></span></div><div style="border-bottom-width: 0px; border-color: initial; border-left-width: 0px; border-right-width: 0px; border-style: initial; border-top-width: 0px; margin-bottom: 0px; margin-left: 0px; margin-right: 0px; margin-top: 0px; outline-color: initial; outline-style: initial; outline-width: 0px; padding-bottom: 0px; padding-left: 0px; padding-right: 0px; padding-top: 0px; text-align: justify; vertical-align: baseline;"></div><div style="border-bottom-width: 0px; border-color: initial; border-left-width: 0px; border-right-width: 0px; border-style: initial; border-top-width: 0px; margin-bottom: 1ex; margin-left: 0px; margin-right: 0px; margin-top: 1ex; outline-color: initial; outline-style: initial; outline-width: 0px; padding-bottom: 0px; padding-left: 0px; padding-right: 0px; padding-top: 0px; text-align: justify; vertical-align: baseline;"><span class="Apple-style-span" style="font-family: Verdana, sans-serif;"><span class="Apple-style-span" style="font-size: small;">- Mas ele ficou tão mudado! Olhe só, Tião!</span></span></div><div style="border-bottom-width: 0px; border-color: initial; border-left-width: 0px; border-right-width: 0px; border-style: initial; border-top-width: 0px; margin-bottom: 0px; margin-left: 0px; margin-right: 0px; margin-top: 0px; outline-color: initial; outline-style: initial; outline-width: 0px; padding-bottom: 0px; padding-left: 0px; padding-right: 0px; padding-top: 0px; text-align: justify; vertical-align: baseline;"></div><div style="border-bottom-width: 0px; border-color: initial; border-left-width: 0px; border-right-width: 0px; border-style: initial; border-top-width: 0px; margin-bottom: 1ex; margin-left: 0px; margin-right: 0px; margin-top: 1ex; outline-color: initial; outline-style: initial; outline-width: 0px; padding-bottom: 0px; padding-left: 0px; padding-right: 0px; padding-top: 0px; text-align: justify; vertical-align: baseline;"><span class="Apple-style-span" style="font-family: Verdana, sans-serif;"><span class="Apple-style-span" style="font-size: small;">- Isso foi porque bebia demais! A bebida altera o corpo todo! Credo em cruz! Está irreconhecível!</span></span></div><div style="border-bottom-width: 0px; border-color: initial; border-left-width: 0px; border-right-width: 0px; border-style: initial; border-top-width: 0px; margin-bottom: 0px; margin-left: 0px; margin-right: 0px; margin-top: 0px; outline-color: initial; outline-style: initial; outline-width: 0px; padding-bottom: 0px; padding-left: 0px; padding-right: 0px; padding-top: 0px; text-align: justify; vertical-align: baseline;"></div><div style="border-bottom-width: 0px; border-color: initial; border-left-width: 0px; border-right-width: 0px; border-style: initial; border-top-width: 0px; margin-bottom: 1ex; margin-left: 0px; margin-right: 0px; margin-top: 1ex; outline-color: initial; outline-style: initial; outline-width: 0px; padding-bottom: 0px; padding-left: 0px; padding-right: 0px; padding-top: 0px; text-align: justify; vertical-align: baseline;"><span class="Apple-style-span" style="font-family: Verdana, sans-serif;"><span class="Apple-style-span" style="font-size: small;">- Esse não parece o compadre! Será que foi o espanto ao ver a cara da morte?</span></span></div><div style="border-bottom-width: 0px; border-color: initial; border-left-width: 0px; border-right-width: 0px; border-style: initial; border-top-width: 0px; margin-bottom: 0px; margin-left: 0px; margin-right: 0px; margin-top: 0px; outline-color: initial; outline-style: initial; outline-width: 0px; padding-bottom: 0px; padding-left: 0px; padding-right: 0px; padding-top: 0px; text-align: justify; vertical-align: baseline;"></div><div style="border-bottom-width: 0px; border-color: initial; border-left-width: 0px; border-right-width: 0px; border-style: initial; border-top-width: 0px; margin-bottom: 1ex; margin-left: 0px; margin-right: 0px; margin-top: 1ex; outline-color: initial; outline-style: initial; outline-width: 0px; padding-bottom: 0px; padding-left: 0px; padding-right: 0px; padding-top: 0px; text-align: justify; vertical-align: baseline;"><span class="Apple-style-span" style="font-family: Verdana, sans-serif;"><span class="Apple-style-span" style="font-size: small;">- Isso é o fim dos tempos! Não te falo sempre que o mundo está perto de acabar? Isso só acontece por causa dos pecados dos homens!</span></span></div><div style="border-bottom-width: 0px; border-color: initial; border-left-width: 0px; border-right-width: 0px; border-style: initial; border-top-width: 0px; margin-bottom: 0px; margin-left: 0px; margin-right: 0px; margin-top: 0px; outline-color: initial; outline-style: initial; outline-width: 0px; padding-bottom: 0px; padding-left: 0px; padding-right: 0px; padding-top: 0px; text-align: justify; vertical-align: baseline;"></div><div style="border-bottom-width: 0px; border-color: initial; border-left-width: 0px; border-right-width: 0px; border-style: initial; border-top-width: 0px; margin-bottom: 1ex; margin-left: 0px; margin-right: 0px; margin-top: 1ex; outline-color: initial; outline-style: initial; outline-width: 0px; padding-bottom: 0px; padding-left: 0px; padding-right: 0px; padding-top: 0px; text-align: justify; vertical-align: baseline;"><span class="Apple-style-span" style="font-family: Verdana, sans-serif;"><span class="Apple-style-span" style="font-size: small;">A pobre viúva se aproximou e sentiu fugir-lhe do rosto todo o sangue e sentiu também que a alma abandonava-lhe o corpo. Pálida como uma flor de algodão, encarou Romualdo, que inocente, não compreendia a cara de espanto dos presentes:</span></span></div><div style="border-bottom-width: 0px; border-color: initial; border-left-width: 0px; border-right-width: 0px; border-style: initial; border-top-width: 0px; margin-bottom: 0px; margin-left: 0px; margin-right: 0px; margin-top: 0px; outline-color: initial; outline-style: initial; outline-width: 0px; padding-bottom: 0px; padding-left: 0px; padding-right: 0px; padding-top: 0px; text-align: justify; vertical-align: baseline;"></div><div style="border-bottom-width: 0px; border-color: initial; border-left-width: 0px; border-right-width: 0px; border-style: initial; border-top-width: 0px; margin-bottom: 1ex; margin-left: 0px; margin-right: 0px; margin-top: 1ex; outline-color: initial; outline-style: initial; outline-width: 0px; padding-bottom: 0px; padding-left: 0px; padding-right: 0px; padding-top: 0px; text-align: justify; vertical-align: baseline;"><span class="Apple-style-span" style="font-family: Verdana, sans-serif;"><span class="Apple-style-span" style="font-size: small;">- Seu Romualdo, que brincadeira é essa? O senhor deu banho de cal no meu marido?- Gritou a mulher partindo pra cima dele – Olhe pra mim, olhe pros meus filhos! Meu marido era negro como eu, negro como os nossos filhos! Porque me trouxe esse defunto branco, parecendo uma cera? – Dizendo isso, levou novamente a mão ao peito, mas dessa vez não esperou as amigas, porque o desmaio foi verdadeiro.</span></span></div><div style="border-bottom-width: 0px; border-color: initial; border-left-width: 0px; border-right-width: 0px; border-style: initial; border-top-width: 0px; margin-bottom: 0px; margin-left: 0px; margin-right: 0px; margin-top: 0px; outline-color: initial; outline-style: initial; outline-width: 0px; padding-bottom: 0px; padding-left: 0px; padding-right: 0px; padding-top: 0px; text-align: justify; vertical-align: baseline;"></div><div style="border-bottom-width: 0px; border-color: initial; border-left-width: 0px; border-right-width: 0px; border-style: initial; border-top-width: 0px; margin-bottom: 1ex; margin-left: 0px; margin-right: 0px; margin-top: 1ex; outline-color: initial; outline-style: initial; outline-width: 0px; padding-bottom: 0px; padding-left: 0px; padding-right: 0px; padding-top: 0px; text-align: justify; vertical-align: baseline;"><span class="Apple-style-span" style="font-family: Verdana, sans-serif;"><span class="Apple-style-span" style="font-size: small;">Romualdo, depois de um tempo para processar o que estava acontecendo, se deu conta de que trocara o defunto, de que trouxera para aquela viúva o defunto errado. Mas, ainda assim, a única preocupação que lhe nublou o semblante foi ter a certeza de que, assim que retornasse à cidade, daria início a uma nova peregrinação.</span></span></div><div><br />
</div><div style="border-bottom-width: 0px; border-color: initial; border-left-width: 0px; border-right-width: 0px; border-style: initial; border-top-width: 0px; font-size: 12px; margin-bottom: 1ex; margin-left: 0px; margin-right: 0px; margin-top: 1ex; outline-color: initial; outline-style: initial; outline-width: 0px; padding-bottom: 0px; padding-left: 0px; padding-right: 0px; padding-top: 0px; vertical-align: baseline;"></div>Luciene Aguiarhttp://www.blogger.com/profile/02679943218017441100noreply@blogger.com3tag:blogger.com,1999:blog-5817950589098488914.post-5003141945514894372010-03-18T13:24:00.000-07:002010-03-18T13:33:00.840-07:00A PRIMEIRA NOITE DE TERTO<div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhT441Gr1VpjWXXphMkLe90e0j1wc35R_vRyrWzremadDHb7I8WYVaKoJqBI8boxgIOr3YFcqRgKbH412kPQA43jSKodaBb3wypLJpFdqNcD_Bf80es_r5M2Tj0APdipfd99sNOVsZRZXM/s1600-h/imagem.jpg" imageanchor="1" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhT441Gr1VpjWXXphMkLe90e0j1wc35R_vRyrWzremadDHb7I8WYVaKoJqBI8boxgIOr3YFcqRgKbH412kPQA43jSKodaBb3wypLJpFdqNcD_Bf80es_r5M2Tj0APdipfd99sNOVsZRZXM/s320/imagem.jpg" /></a></div><br />
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<div style="text-align: center;"><span class="Apple-style-span" style="font-family: Arial;"><span class="Apple-style-span">Texto escrit</span>o<span class="Apple-style-span"> em maio de 1984</span></span></div><br />
<span class="Apple-style-span" style="font-family: Verdana, sans-serif;">Chamavam-no de Terto. Terto de Tertulino seu pai e de seu avô. Ele já contava com 45 anos de idade e nunca na vida se envolvera com uma mulher. Não que não tenha sentido vontade, mas as circunstâncias da vida e a timidez sempre se interpuseram em seu caminho. Dentro dessas circunstâncias estava sua mãe. Acreditava, ele, depois de muito tempo, que ela fora o grande obstáculo para a entrada dele no mundo dos homens. Não só o grande, como talvez o único. “Mas também nessa altura da vida não adiantava lamentar nem culpar ninguém”. Pensava de vez em quando. Vez ou outra se pegava odiando a mãe, até mesmo desejando que ela morresse, porque só assim, acreditava, estaria livre e desimpedido para seguir seu caminho. Mas que caminho? Que rumo poderia tomar depois que ela se fosse se o tempo passou e ele não construiu sua vida? Dizia seu pai quando vivo que para um homem começar a trilhar os caminhos do seu destino, antes de tudo, tinha que conhecer o calor de uma mulher. E isso, definitivamente, Terto não conhecia. Naquela manhã acordara disposto a por um fim em todo esse tormento. Dessa vez iria sim conhecer os mistérios do mundo dos homens. Passara em frente à casa da mulher-mestra naqueles assuntos. A mestra de todos os meninos daquele pequeno vilarejo. Ela tinha quase certeza de que ele era desconhecedor do assunto porque nunca experimentara de sua cama. Sempre que o via perguntava quando ia visitá-la. Ele não respondia enrubescendo até a raiz dos cabelos e ficando fulo de ódio e vergonha. Ela sempre estava na janela àquela hora, mas justamente naquele dia, o dia em que ele criara coragem para se aproximar o diabo da mulher achou de não aparecer. Será que ele tinha dado alguma demonstração de que resolvera ir até lá ou será que ela tinha parte com o diabo e este a avisara de que ele iria? E ela para deixá-lo aperreado, se escondeu? Vá saber! De repente morreu ou caiu de cama com alguma enfermidade. É, pra ele não tinha jeito mesmo! Pensou desgostoso. Se essa peste de mulher resolvesse se aposentar o que ele iria fazer para sair da amargura de trazer estampada na testa a marca da donzelice? Entrou no boteco em frente à casa dela e pediu uma dose de pinga. Era bom esperar um pouco, de repente ela pode só ter ido ao banheiro, ponderou levando o copo aos lábios. Virava e mexia olhava pra casa da mulher. O dono do boteco percebendo sua inquietude se aproximou da mesa, puxou uma cadeira e se sentou. Olhou na direção da casa da mulher e sem dar conhecimento de que suspeitava do motivo da sua estada ali, comentou: _Ela não apareceu na janela hoje. Fiquei sabendo que viajou. Foi pra capital. Dizem que não volta mais. Foi morar com a filha. Cansou-se da vida que levava. Já tava exausta. Não tava mais agüentando agasalhar os moleques e até mesmo os homens feitos. Olhou pra Terto e piscou um olho. _Foi embora sem avisar ninguém. De certo não quis se despedir. Terto virou o resto da pinga e saiu mudo. Andou a esmo pelas pequenas e estreitas ruas do povoado. Um misto de raiva e frustração machucou-lhe o peito. Ele como sempre não sabia utilizar as horas e os dias de sua vida. Quanto tempo essa mulher morou ali? Desde que ele era moleque. Todos os seus colegas foram até ela. Hoje muitos já estavam casados, outros solteiros, mas tinham suas mulheres. E ele? Um atoleimado, um bocó. Merecia isso mesmo. Morrer donzelo, feito uma beata velha, cujo destino era só cuidar da mãe. A manhã passou, e ele continuou andando a esmo. Entrou a tarde e quando esta já despencava no horizonte resolveu tomar o rumo de casa. Morava a uns 10 km do povoado. Montou no lombo da égua e deu início a um trote vagaroso. As histórias de seus colegas de infância e juventude acudiam-lhe à lembrança. Muitos se iniciaram com a tal mulher, outros com as irmãs, outros com as primas, outros com as tias. Mas o certo é que todos se iniciaram. Outros se iniciaram até com as vacas e ovelhas das fazendas. Ele achava muito nojento se misturar dessa forma com os bichos. Mas, pensando bem, será que é tão nojento assim? De repente uma idéia lhe surgiu na cabeça como uma luz. Por que não com a sua égua? Ela era limpa, ele sempre cuidava dela com muito esmero. Dava-lhe banho constantemente. Era uma égua bonita. Não contavam os mais velhos e até os garotos que estudavam que existiu um imperador que fez de seu cavalo um senador? Porque ele não podia tomar a sua égua por esposa. À medida que aquela idéia ia se formando ele ia sentindo seu corpo reagir. Instintivamente foi apressando o passo e colocou a égua pra correr pra chegar logo em casa. Quando chegou deparou com a mãe à sua espera na porta da casa. Estava toda impaciente e o cumprimento foi uma repreensão. Quis saber a razão da demora. Pela primeira vez Terto não lhe deu importância. Nem se deu ao trabalho de lhe responder. Apressadamente tirou a sela do animal, jogou-a na calçada e se dirigiu em direção a uma manga bem distante da casa a fim de, para todos os efeitos, soltar a égua. Sua mãe ficou retrucando, mas ele não mais a ouvia. Estava feliz. Sentindo-se livre. Ia finalmente realizar um sonho acalentado por tantos anos. Perguntava-se como pudera ser tão bobo por não ter tido essa idéia antes. Mas nunca é tarde, animou-se. Nada mais iria lhe atrapalhar. De agora em diante pouco lhe importaria as implicâncias de sua mãe. Se ela quisesse urrar em seu ouvido, que urrasse. Ele já tinha alguém com quem se abrir, com quem poderia ser ele mesmo, Terto. Alguém que não reclamaria de nada. Alguém que estaria sempre pronta a lhe servir, a lhe ouvir sem lhe interromper e repreender. Alguém verdadeiramente sua amiga. Como ele fora bobo, tonto, um verdadeiro atoleimado por não ter pensado nisso antes. Quanto tempo perdido. Mas faria tudo para tirar o atraso. Atravessou a manga e levou a égua para um lugar um pouco mais adiante. Sabendo que não havia ninguém naquele momento para perturbá-lo, para vigiá-lo, envolveu a égua num abraço e começou a acariciá-la e beijá-la. A escuridão da noite fez com que ele se sentisse dono de si e senhor daquele animal indefeso que daquele momento em diante seria sua égua, sua “esposa”, sua “amante”. Iriam se amar só à noite. Seria o melhor momento. A luz do dia revela a timidez, a vergonha, o bom senso. À noite, o Terto que só ele conhecia poderia aparecer e se dedicar àquele momento mágico, só dele e da sua primeira e talvez única amante. Única, porque naquele momento ele não pensava em ter outra a quem amar. Naquele momento era o mais fiel e dedicado dos amantes. Durante o dia, o Terto bobo que todos conheciam, iria zelar da égua com muito mais dedicação e à noite o Terto, amante apaixonado iria amá-la. Mesmo em suas fantasias de adolescente nunca se sentira tão excitado como naquele momento. O instinto lhe guiou e fez com que conduzisse a égua a um lugar mais apropriado a fim de lograr o seu intento. O animal, dócil aceitou, e Terto pela primeira vez na vida soube o que é estar vivo</span>Luciene Aguiarhttp://www.blogger.com/profile/02679943218017441100noreply@blogger.com1tag:blogger.com,1999:blog-5817950589098488914.post-70043907134219791952010-03-04T10:11:00.000-08:002010-03-24T17:38:07.514-07:00A PRECE DE SEU QUINCAS NUM DIA DE CÃO<div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgtXurI9cEKWPB3RtxWiwyFnr3u-fNDfx6Z1SHE9dS63i8vdMNrqlLAqOj9c2zJJWBd2962fvizns9bWCQP18po4Owqo8KiLSkmCm2ZjoGePD2mY7iY2iClpqj1ewJgSpQ9S8J5GEqDm6g/s1600/dedao.jpg" imageanchor="1" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgtXurI9cEKWPB3RtxWiwyFnr3u-fNDfx6Z1SHE9dS63i8vdMNrqlLAqOj9c2zJJWBd2962fvizns9bWCQP18po4Owqo8KiLSkmCm2ZjoGePD2mY7iY2iClpqj1ewJgSpQ9S8J5GEqDm6g/s320/dedao.jpg" /></a></div><div style="text-align: center;"><br />
</div><div style="text-align: center;">Conto escrito em maio de 1983.</div><br />
Naquele dia, dia acalorado para Seu Quincas, foi um dia infernal. O corpo todo lhe doía, a febre consumia-lhe e a assadura lhe incomodava os fundos. Tudo isso porque uns dias atrás, nas suas andanças pela roça levou uma topada e saiu aos tropeções tentando se equilibrar, mas mesmo assim, beijou o chão e encheu a boca de terra e cisco. Levantou praguejando e cuspindo fora uma rama de mato que teimava em permanecer em sua boca. Levou a mão ao dedão do pé ao sentir a sandália molhada de sangue. A unha ficou com a metade suspensa. Teria que cortar fora o pedaço.<br />
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- Maldição! Praguejou mais uma vez. Aquilo ia ser uma papeira por muitos dias! Tirou a sandália e deixou sua cachorra lamber o sangue. O animal, não satisfeito apenas com o sangue da sandália, espichou a língua e lambeu-lhe o dedo machucado, arrancando-lhe um uivo de dor.<br />
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Sua esposa preparou uma papa de flor de malva, mastruz, sal e vinagre, mas pelo jeito não adiantou muito, já que dias depois o dedo já não tinha mais a aparência de dedo e sim, de uma cabeça de cobra, e das grandes! Como se não bastasse todo esse tormento, sendo obrigado a ficar de repouso, impedido de trabalhar, sua esposa, fazendo galhofa, lhe recomendou não sair de casa, pois perigavam as cobras se aproximarem, caçando amizade. Como a cabeça do dedo estava inchada e roxa, seus amigos lhe aconselharam a procurar um médico e, além do mais, a febre já lhe punha a bater queixo. Seu Quincas borrava nas calças ao imaginar se consultando com um médico. Aquele cheiro de hospital, aquela roupa branca de doer as vistas, aquela voz mansa, aquele cheiro de remédio que impregnava o médico lhe davam arrepios e lhe causavam enjoo. Mas, pelo jeito, tinha que ir ou então morreria de tétano. Da sua roça ao povoado distavam uns quinze quilômetros. Teria que montar no lombo do cavalo, pois não tinha carro nem dinheiro pra fretar um. Sem ter como apelar pra outro remédio, resolveu ir ter com o doutor. Foi dormir na véspera da consulta com um frio na barriga. Rolou na cama de um lado pra outro, mas não conseguia se agarrar ao sono. Depois de muito vai e vem, enfim conseguiu passar por uma breve modorra. Mais tarde, por volta da madrugada, acordou tremendo de frio e dor na barriga. Correu pra casinha que servia de sanitário e arriou as calças.<br />
O produto da diarréia lhe desceu pelas vias inferiores, como se fosse um braseiro, numa ardência terrível. Puxou pela memória e lembrou que não havia comido pimenta nem naquele dia, nem no dia anterior. Estranhou, pois só sentia queima ao defecar quando comia pimenta. Agora mais essa: além do dedo doente e da febre, essa disenteria fora de hora. Com certeza, depois dessa via crucis noturna, iria ter assaduras, que certamente se agravaria com os solavancos da viagem no lombo do animal. O suor começou a descer em bicas e a expulsão dos gases assustou os cachorros que se puseram a latir. Depois de mais alguns minutos purgando seus pecados, Seu Quincas se ergueu e retornou ao quarto. Deitou na cama vagarosamente pra não acordar a mulher que dormia o mais tranqüilo dos sonos. Puxou a coberta até o queixo e ficou quietinho pedindo a Deus que a diarréia não voltasse a atormentá-lo, pelo menos até o raiar do dia. Ficou cismando em como seria dolorosa a travessia até o povoado. Não podia se esquecer de pedir à esposa para lhe passar um pouco de polvilho nas partes íntimas, para prevenir as assaduras, antes da viagem. Será que teria muito que esperar na fila, meu Deus? Fila de médico é sempre muito comprida! Ainda mais que o doutor só atendia lá uma vez por semana! Se assim fosse, com certeza, preferia morrer a sofrer tamanha ansiedade! Nada pior do que esperar por um tormento sabendo que não tem como evitá-lo. Se Deus lhe concedesse uma ajuda para que não precisasse ir ao médico! E se esse doutor cismasse em lhe arrancar a unha que estava encravada na carne? Só de pensar o estômago contraía. Preferia morrer. O galo cantou e a esposa meteu os pés e levantou. Olhou pro marido e se lembrou que teria que acompanhá-lo ao médico. Foi pros fundos da casa lavar o rosto e cuidar do café. Seu Quincas levantou fraco e tremendo de frio. A noite anterior voltou-lhe à memória e ele correu a pedir à esposa para lhe passar o polvilho.<br />
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- Criatura! Passe um pouco de polvilho no meu traseiro. Tá uma queimação dos diabos!<br />
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Esta se prestou a lhe atender. Fez-lhe deitar-se de bruços e untou-lhe as nádegas com o polvilho de tapioca. Em seguida dissolveu um pouco num copo d’água e deu-lhe de beber, pois além de assadura, era eficaz também para disenteria.<br />
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- Jesus, homem de Deus! Isso tá quase na carne viva. O que foi que tu andou fazendo pra assar esse traseiro desse jeito?<br />
- Não sei. To estranhando, pois não comi pimenta esses dias...<br />
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Depois de alguns minutos gastos nos últimos preparativos da viagem, Seu Quincas já se sentia exausto. Não conseguiu fazer o desjejum direito. Mal bebericou um gole de café preto. As forças abandonavam seu corpo. Subiu no cavalo e se pôs em marcha com a esposa na garupa. Eram 3 horas da manhã e teriam que andar depressa para chegar o mais rápido possível ao povoado. O cavalo começou a andar num trote rápido e regular. Como era muito cedo, apenas o barulho dos cascos do animal se fazia ouvir, sendo interrompido vez ou outra, por um canto de galo, pássaros ou urro de algum jumento. Com o balanço da montaria Seu Quincas sentia náuseas e tontura. A manhã que surgia pareceu-lhe com uma cor estranha: de um amarelo pálido e cinzento. A boca amarga e seca aumentava a sensação de mal estar. Quando o sol já ia um pouco alto, teve a ligeira impressão de que a manhã se apagara e que ele tinha se ausentado dali. Sacudiu a cabeça, apertou os olhos e imaginou que aquilo devia ser porque estava com o estômago vazio. O dedo latejava. A faixa limpa que usava para cobri-lo, já estava toda empoeirada. Levantou a perna e apoiou o pé no cabeçote da sela. Sentiu os fundos arderem. A assadura se instalou de vez. De nada adiantou o polvilho, já que teve que se balançar em cima do animal. A lembrança do médico vinha-lhe à mente, mas tentava espantá-la prestando atenção à paisagem, porém de nada adiantava, já que aquelas paragens lhe eram tão familiares. De repente parou e disse à esposa que não ia mais. Ela rosnou e tocou o cavalo que voltou a andar. Seu Quincas deixou-se levar. Foi sentindo as forças lhe abandonarem. Parecia-lhe que se distanciava do mundo. Dali. A esposa ia ficando longe. Ia sentindo um sono. “Se pudesse dormir sobre o cavalo sem o perigo de cair, seria tão bom!”. Novamente veio aquela estranheza. A manhã se apagando e ele se ausentando de si. Nessa altura, já estavam próximos do povoado. Seu Quincas, percebendo a aproximação, desejou uma mãozinha de Deus. Preferia morrer a ir a um médico. Sempre foi assim, desde pequeno tinha medo daquela roupa branca de doer as vistas. Mais alguns minutos de trote entraram no povoado. O pequeno posto de saúde ficava logo na entrada. Deu pra ver a fila. Um montueiro de gente. Seu Quincas sentiu o mundo desabar sobre suas costas. Não tinha jeito pra ele. Ia ter que esperar na fila, naquele sol abrasador. E o dedo que não parava de latejar! O pé já estava todo preto. Preto de inchado. A febre que não cedia! O sol brilhando de quente e ele tremendo de frio! Parou o cavalo e desceu. Se não fosse um amigo e a esposa tinha caído do animal ao descer. Encostou-se à parede do posto e se pôs a esperar enquanto a mulher foi fazer a ficha. Depois de alguns minutos em pé com as costas apoiadas à parede foi se derreando, derreando e sentou-se no chão. Suava como um cuscuz. A manhã novamente apagou. O povo todo e o amigo desapareceram. Ele novamente se ausentou. Uma sensação rápida, mas estranha. Apercebeu-se de si com a mulher lhe cutucando e lhe mandando ficar de pé. Mal ouviu o que ela dizia. Suas pálpebras pesavam e tudo ia ficando distante mais uma vez. Ela tornou a lhe cutucar. Abriu os olhos com grande esforço e tentou olhar para ela, mas a claridade da manhã o impediu. Ela desistiu e ficou em pé ao seu lado. A fila ainda estava grande. Pediu um pouco d´água à mulher. Ela abriu a sacola, destampou uma garrafa e lhe deu um pouco. Sentiu-se quase feliz e descansado com aquele pouco de água. Tão bom aquele contato frio na sua boca seca! Sorriu pro nada e mais uma vez acalentou a esperança de não precisar se consultar. A fila tava tão grande! Quem sabe o doutor desistiria de atender aquele povaréu todo? Mas se não desistisse, ele, Quincas preferia morrer. Sorriu de novo. Um riso vazio e pro nada. De novo a manhã se apagou e ele se sentiu longe. Levou a mão para tocar a esposa, pois ela pareceu afastar-se dele muito rapidamente. E lá estava ela, longe, muito longe. Ela foi sumindo, sumindo, juntamente com a claridade da manhã até que seu Quincas não viu mais nada.<br />
Deus atendeu a sua prece.Luciene Aguiarhttp://www.blogger.com/profile/02679943218017441100noreply@blogger.com2