Maria olhava para aquele ambiente amarelo-cinza a sua frente. Passava um
pouco do meio dia e ela sentia aquela preguiça que sempre lhe tomava o corpo
depois do almoço. Estava sentada, como sempre fazia naquele horário, debaixo de
um velho pé de cedro em frente à sua casa. O tempo estava quente e abafado, mas
vez ou outra a brisa balançava as altas galhas da árvore e lhe refrescava o
calor. A claridade do espaço amarelo-cinza agredia-lhe os olhos. Não se via
nada verde. Os poucos tons de ocre esverdeado que iam substituindo o verde
deixado pela chuva, também já haviam sido devorados pelo amarelo-cinza. Junto
com a sensação de exaustão e abandono causada por essa tonalidade e pela
temperatura quente e abafada, Maria sentia uma espécie de secura e esvaziamento
por dentro que lhe davam a impressão, de que a qualquer momento, ela iria
deixar de existir. Olhou o céu. O azul pendia mais pro cinza-arroxeado: uma cor
intensa, agressiva e opressora. Nenhuma nuvem. A claridade e intensidade
daquela cor parada, morta lhe fizeram franzir os olhos. Maria bocejou. Suas
pálpebras pesavam e a agradável sonolência dominava cada vez mais o seu corpo.
Olhou e sorriu para os pequenos arbustos secos e retorcidos que se espalhavam
pelo terreiro de sua casa.
Vez ou outra ouvia os movimentos da sua mãe dentro de casa. Naquele
horário do dia Maria sentia-se quase particularmente feliz. Era um momento que
ninguém a perturbava. Era um momento em que ela podia ficar sozinha, dedicar-se
a si mesma e remexer em suas memórias, em suas idéias e em seus sonhos. Era um
momento só seu onde ela podia ser ela mesma ou quem quisesse. Depois desse
momento de autodedicação, Maria voltaria para uma rotina menos agradável: lavar
a louça, varrer os terreiros da casa, dar comida aos porcos e lavar algumas
peças de roupa.
Não mais resistindo ao sono Maria passou a mão pelo chão afastando alguns
galhos caídos e se acomodou deitando-se. Suas pálpebras se fecharam e ela
dormiu. Dormiu o seu sagrado sono de depois do almoço. Mais tarde seria
acordada pela cadelinha do seu pai. Ela lhe lamberia as faces e se deitaria ao
seu lado até que se levantasse e fosse para dentro de casa cuidar das tarefas.
Maria sonhou. Um sonho simples sem grandes pretensões: sonhou que a
cadelinha do seu pai, era sua irmã, e no seu sonhou verificou que eram muito
parecidas. No sonho, brincavam como faziam acordadas, à margem do riacho seco.
Brincavam de cobrir com os dedos as inúmeras linhas deixadas pelas rachaduras da
terra seca. Maria ficava encantada com aquelas rachaduras, pois formavam
desenhos engraçados e estranhos. Tulipa
– a cadelinha de seu pai - atravessava o riacho sobre as linhas e Maria
admirava as voltas que seu corpo dava para conseguir acompanhar aqueles
desenhos. A chuva era por demais boa e esperada por todos, trazia comida e
água, mas levavam embora aquelas formas mágicas que faziam com que elas
descobrissem figuras misteriosas. O consolo era que com a próxima seca, outros
desenhos estariam lá para serem descobertos por elas. Maria não entendia como
ela conseguia ver naquelas linhas tantas coisas conhecidas: vacas, galinhas,
árvores, porcos. Acreditava que algum ser misterioso desenhava aquelas coisas
para ela e Tulipa descobrirem. Aquilo era um mistério para Maria.
Acordou com Tulipa lhe lambendo o rosto. Sorriu para ela e a abraçou.
Espreguiçou-se, olhou para o céu e levantou-se para mais uma tarde como todas
as outras.
Caetité, abril/maio de 1982.