sexta-feira, 10 de dezembro de 2010

APENAS MAIS UMA FEIRA DE SEXTA-FEIRA



A madrugada daquela sexta-feira estava fria por demais. Seu Dezinho olhou seu antigo relógio de pulso de marca Orient e viu que já passavam das 3h e meia da manhã. Teria que levantar, e, rápido, pois do seu pequeno sitio até a cidade tinha um bom pedaço de chão para vencer. Sua filha Maria e sua cadelinha Tulipa iriam acompanhá-lo. Essa era a rotina de toda sexta-feira, dia em que levavam alguns poucos produtos para vender na feira. Naquele dia específico levaria banana, batata-doce, alguns frangos caipiras e algumas poucas dúzias de ovos. O dinheiro que recebia em troca da mercadoria, lá mesmo na cidade deixava, comprando algumas coisas pra casa e bebendo alguns goles de cachaça.
Quando levantou, sua cachorrinha, que dormia nuns trapos ao lado da sua cama, já estava a sua espera, toda alegre e faceira, pois sabia que aquele dia era dia de passeio.  Virou para o lado e sacudiu a mulher que resmungou fazendo força para acordar. Tornou a cutucá-la e chamou-a com uma voz que mais parecia um grunhido. Lá do seu quarto mesmo gritou por Maria que dormia na sala sobre um couro de boi e uns pedaços de pano que um dia foi uma coberta. A menina, de um salto pulou fora da “cama” e esfregando os olhos ainda desorientada se dirigiu para o quintal a fim de urinar e lavar o rosto. Não queria se atrasar, pois tinha medo do pai, principalmente das suas gritarias. Odiava o grunhido da sua voz, pois os sons que lhe saiam dos lábios eram mais facilmente compreendidos por sua cadelinha do que por qualquer ser humano. O diálogo entre eles era pouco ou quase nada. Falavam o estritamente necessário. Rosnavam um para o outro quando queriam algo ou na prestação de contas de alguma tarefa realizada.
Seu Dezinho vestiu a sua melhor roupa. Uma calça de tergal azul escura e uma camisa branca de igual tecido. O chapéu de massa azul, presente de um amigo que chegara de São Paulo, era o melhor que tinha. O que usava na roça era de um couro velho já bastante estragado.  Dirigiu-se às pressas para a cozinha para fazer o desjejum e viu que a mulher ainda labutava em acender o fogo. A fumaça que subia do já gasto fogão de lenha ardeu-lhe nos olhos e ele praguejou. Era um homem eternamente mal-humorado, de natureza azeda. A mulher e a única filha tremiam ao som da sua voz. Impaciente deu outro berro chamando por Maria. Esta entrou na cozinha cabisbaixa já vestida com sua melhor roupa: um vestido de chita vermelha estampada com florzinhas brancas e rosas. Aquele vestido foi presente de sua madrinha que morava em São Paulo. Sua madrinha prometera levá-la para morar com ela, mas Maria já não acreditava que isso fosse acontecer, pois já fazia muito tempo que essa promessa fora feita.
Depois de mais alguns minutos ela, o pai, a cachorrinha e um burro que carregava as mercadorias num caçuá, marchavam num passo rápido e constante para o vilarejo. Seu Dezinho e a cachorrinha iam à frente, Maria, tiritando de frio, e o burro iam atrás. Maria observava o pai e a cachorra. Eles se entendiam tão bem, se comunicavam com tanta facilidade que Maria ficava pensando que seu pai tinha algum dom especial por consegui entender e ser tão bem compreendido pela cachorrinha. Com Tulipa, ele era sempre carinhoso, dócil. Quando almoçavam na feira e mesmo em casa, ele reservava sempre os melhores pedaços de carne, nas raras vezes que podiam desfrutar dessa iguaria, para si e para a cachorra. Na estrada, indo pra feira ou voltando pra casa, quem primeiro recebia água para matar a sede era a cachorrinha. Maria não mais se importava com aquilo. Talvez nunca tivesse se importado. Era natural para ela, pois sempre fora assim. Não tinha por que ser diferente Não sabia se seu pai é que era próximo dos animais ou se Tulipa é que era próxima dos humanos.
O dia começava a raiar no horizonte e o céu surgia tingido em variados tons de amarelo. Maria sempre gostava de ver o nascer do sol. Adorava ver as aquelas formas mágicas e misteriosas que o colorido formava no nascer do dia. Lembrou-se do cochilo sob o pé de cedro que aquele dia não poderia desfrutar. Desfrutaria sim do calor infernal naquela feira cheia de gente e de odores estranhos que a faziam enjoar e sentir tontura. Maria já se sentia cansada daquela rotina de todo dia de sexta feira sair com seu pai e a cachorra na madrugada fria. Sua mãe, coitada, ficava anos sem colocar os pés pra fora da porteira da “roça”. Entrava dia e saia dia, socada naquela casa, sem ver nada nem ninguém. Mas aquilo para Maria também era normal, natural. Sempre fora assim, então, acreditava que não podia ser diferente, ou melhor, nem imaginava que podia ser diferente.
Ao entrar na currutela, o dia já estava claro, mas era ainda muito cedo. Dirigiram-se ao lugar em que, costumeiramente, ficavam, arriaram a carga sob uma árvore de copa até larga, que lhes proporcionava uma boa sombra. Mas com o subir do sol, mesmo sob aquela árvore, o calor iria se instalar. Maria já sabia que seu pai ia ficar o dia inteiro zanzando pra lá e pra cá e ela vendendo as mercadorias. O burro se acomodou sob a copa da árvore e pareceu respirar aliviado quando tiraram de sobre suas costas o peso dos produtos de venda. Maria sentou-se no chão. Já sentia fome. Olhou para as bananas, mas não se atreveu a pegar nenhuma porque já estavam contadas e se ousasse comer alguma, a surra que tomaria, não valeria mais do que algumas horas de fome. Maria já se resignara a sentir o estômago roer. Sabia que só comeria um pouquinho de farofa ao meio-dia, mas isso também era natural e normal. Sempre fora assim, não tinha porque ser diferente.
A manhã passou, o sol subiu e Maria continuava lá, vendendo os produtos e guardando os poucos trocados num pequeno saquinho de pano. Vez ou outra seu pai aparecia e lhe tomava o graúdo, deixando-lhe apenas os miúdos para algum eventual troco. Ao meio dia os três comeram a farofa de ovo e Maria sabia que a si seria reservada uma pequena parte. Comeu indiferente, mas sentiu um certo conforto no estômago que há horas estava oco e soltando cada ronco que não lhe permitia cochilar sob aquele calorão. Agora com o estômago forrado, o sono iria dominar-lhe de vez, mas ela teria que resistir para vigiar a mercadoria. Se sumisse alguma coisa seu pai lhe daria uma peia sem dó e sem piedade. Maria se colocou de pé para espantar a modorra que se aproximava. Olhou pro burro e este de olhos fechados parecia cochilar. Invejou-o, pois ele poderia dormir a tarde toda se quisesse. Olhou pro chão e viu que ali ainda restavam duas galinhas e algumas pencas de banana. Pediu a Deus que lhe permitisse vender tudo e já.
A tarde começou a avançar e Maria percebeu naquela altura, já indiferente, que a mercadoria ia aos poucos desaparecendo. Sabia que venderia tudo. Agora tanto fazia vender rápido ou não, pois o sono já havia ido embora.  A tarde caiu e seu pai apareceu novamente. Arrumaram as tralhas e pegaram o caminho de casa. Ele e Tulipa na frente ela e o burro atrás. Maria andava por aquele caminho, como sempre andou toda sexta feira. Olhou para os pés cobertos de poeira, os mesmos de sempre. Olhou a paisagem, a mesma de sempre, e foi como se Maria não tivesse visto nada, pois quando se acostuma com as coisas é como se não as percebesse mais. Mas isso era normal e natural para Maria. Sempre fora assim. Não tinha porque ser diferente.

Março de 1983

quarta-feira, 17 de novembro de 2010

LUA CHEIA NA SEXTA-FEIRA DA PAIXÃO



A tarde já despencava no horizonte e o céu estava tingido de um laranja avermelhado prenunciando uma noite fria. Já se podia ver algumas estrelas e a enorme lua cheia. Maria e sua mãe Dona Raimunda estavam, ambas, debruçadas na mesma janela, observando a estrada na esperança de ver surgir, na curva que se formava próximo a um pé de jatobá, seu Dezinho que desde cedo fora para o vilarejo. Maria não fora naquela sexta-feira porque era Semana Santa e não tinha feira.
Já estavam ali há um bom tempo e Maria já se sentia agoniada suspeitando do que ela sempre desconfiava, mas que ainda não tivera coragem de confessar à mãe.
- Vamos entrar mãe! Vamos entrar e fechar bem as portas e janelas! – Implorou Maria olhando o céu e fixando a lua cheia que tal e qual um queijo grande e amarelado pairava pendurada no céu gigantesco, estrelado e frio.
Dona Raimunda olhou-a intrigada e percebeu que os olhos da filha estavam arregalados e que seu queixo tremia.
- Esse bate-queixo é de frio, Maria? Não tá frio pra bater queixo, não! – Tocou-a na testa – Será que tu ta com febre? Não, não tá. – Constatou. Olhou mais uma vez para a estrada, balançou a cabeça e se afastou para fechar a janela – Vamos, vamos entrar. Teu pai não vem mais não. Já escureceu mesmo! Ele tem essa mania de toda Sexta-feira Santa descambar pra cidade e só voltar no outro dia! Todo ano é isso!
Fechou as janelas, verificou a porta da rua e do fundo da casa, todas de madeira reforçada e com taramelas.
- Pelo menos o madeiramento da casa ele soube escolher! É um homem tão lambanceiro, tão descuidado com a casa, que não sei por que milagre não botou umas madeiras podres pra proteger a casa.
Olhou de novo pra Maria que estava encorujada num banco tremendo igual a uma vara verde.
- O que é que tu tem menina! Não vai adoecer agora, pelo amor de Deus!Vê que tamos sozinhas aqui! Não tem viv´alma num raio de quase meia légua! Pare com essa tremedeira!
- Não to doente não, mãe. Só não to conseguindo parar de bater o queixo. Deve ser por causa do jejum!
- É pode ser! – Colocou a mão no queixo e pôs-se a cismar por alguns minutos, depois como quem decide falou - Pra tu não adoecer, Deus não vai se importar se a gente quebrar o jejum só com um gole de café. – Olhou pra cima e fez o sinal da cruz - Vem, vamos pra cozinha tomar só um tiquinho. O fogo ainda ta aceso e lá tu para com esse treme-treme – saiu pros fundos da casa acompanhada de uma Maria acabrunhada e apavorada.
Entraram na cozinha e Dona Raimunda acendeu o fifó num tição de lenha. Maria puxou o banquinho pra perto do fogão. Acomodou-se colocando os dois pés em cima e cobrindo as pernas com a saia do vestido. Com mãos geladas recebeu a xícara de café que sua mãe lhe estendia. Tirou um gole e ficou olhando aquela xícara de esmalte verde já com algumas partes descascadas pelos anos de existência. Virou pra mãe com os olhos espichados:
- Será que o pai ainda vem? Queria dormir com a senhora, mas tenho medo de que ele chegue e brigue comigo!
Dona Raimunda estalou a boca, sacudiu a cabeça e concluiu:
- Que importa! Ele briga de qualquer jeito. Briga por tudo e por nada! Uma briga a mais ou a menos não faz diferença! – Chupou um gole de café da xícara e perguntou: -Melhorou a tremedeira? Que diabos será isso? – Benzeu-se pelo nome pronunciado - Tu andou nadando no rio até que hora, Maria?
- Eu não nadei mãe! O rio ta quase seco, esqueceu?
A velha fingiu que não ouviu e olhando pro telhado e observou: - Já deve ser tarde. Teu pai não vem mais não. Veja a lua, já ta subindo. Maria ergueu a cabeça e viu por algumas frestas no telhado que a lua já tinha alcançado um ponto um tanto alto no firmamento. Ficaram ali por um bom tempo tomando café. O tiquinho acabou secando o bule que estava cheio.
- Vamos deitar e tentar dormir – Disse Dona Raimunda decidindo –se e indo em direção à porta.
Maria de pronto a acompanhou. Saíram da cozinha e foram direto para o quarto. Maria de imediato se abaixou e tirou de debaixo da cama um urinol esmaltado de branco e se agachou pra urinar. Sua mãe olhou-a com um ar de repreensão e esbravejou:
- Por que tu não fez no quintal Maria, antes da gente vim deitar? Vai encher o penico antes da hora.
- Eu faço pouquinho mãe. Não to com muita vontade. É só pra não ter que levantar mais tarde. – O queixo de Maria ainda batia, sua mãe percebeu pela voz tremida.
- Credo em cruz menina! Segunda-feira, se tu não melhorar, vou ter que te levar no médico. Isso não pode ser por causa do jejum, não, senão eu também estaria tremendo! T´esconjuro, deve ser alguma coisa do outro mundo! Será que tu tá com algum encosto?
Maria deu de ombros e levantando-se empurrou o urinol para debaixo da cama e se deitou encolhendo debaixo da coberta. Sua mãe já se ajeitava por sua vez, pondo-se a debulhar o terço, como fazia todas as noites e principalmente naquela que era uma noite santa. As horas foram passando e Maria sem ainda conciliar o sono viu quando sua mãe findou as orações e se deitou logo de imediato pondo-se a puxar um ronco acompanhado de um som semelhante a um assovio. Maria, prestando atenção aos sons do sono da mãe, dormiu. Depois de alguns minutos um uivo longo e doloroso assustou-as fazendo-as acordarem com os corações aos pulos.
- Valei-me Nosso Senhor Jesus Cristo! Foi tu Maria? – Benzeu-se Dona Raimunda fazendo o sinal da cruz. Tateou a cabeceira da cama atrás do terço. Encontrando-o, mais do que depressa se pôs a debulhá-lo novamente.
- Deus me livre mãe! Eu não! – Maria puxou a coberta até o queixo apoiado sobre os joelhos e ficou a esperar. Sabia que alguma coisa estranha estava acontecendo. Daí a pouco novo uivo, dessa vez, mais próximo e mais forte, mas ainda lamentoso e longo.
- É um lobisomem, mãe! – Apostou Maria num fio de voz, continuando a bater queixo.
- Será?! Valei-me Nossa Senhora! E Dezinho que não chega!
Ficaram mudas e imóveis. Não tinham coragem de mover um músculo. Apenas Dona Raimunda que movia os lábios em oração. Maria procurava evitar até os pensamentos com medo de ser adivinhada. Começaram a ouvir passos. Os passos pareciam rodear todo o terreiro e quando se aproximavam da casa, paravam na porta da frente. Ouviram também o farejar que parecia ser de um cão. Maria ouvia as pancadas do próprio coração e tinha a sensação de este ia lhe sair pela boca. De repente o animal, ou fosse lá o que fosse, começou a arranhar a porta.
- Meu Deus, o que será isso, meu Jesus! – Apelou Dona Raimunda. Olhou para Maria e viu que esta estava pálida e imóvel como uma estátua. Sacudiu-a.
- Calma Maria! Não há de ser nada! – Dona Raimunda, também apavorada, tentava acalmar a pobre da menina.
Começaram a ouvir ao longe um latido de cachorro, só que um latido familiar.
-É o latido de Tulipa, não é? – Dona Raimunda se levantou indo em direção à janela. Maria saltou sobre ela:
- Não abre mãe! Não abre! – Seus dentes chocavam-se uns com os outros incontrolavelmente.
- Mas menina, deve ser teu pai que vem chegando! Tu não ta ouvindo o latido de Tulipa?– Vendo o terror da filha a mulher concordou – Está bem. Se for teu pai quando ele chegar ele chama na porta.
O latido da cachorrinha se fez ouvir mais perto e mais perto, mas logo em seguida ouviram apenas um ganido baixinho depois, o silêncio.
Ficaram ali sentadas na cama orando por mais algum tempo até que Maria deu outro pulo da cama assustada.
- Que foi agora menina! O bicho não uivou não!
- A senhora não ouviu? – Conseguiu dizer tentando trincar os dentes.
- Não ouvi o quê, menina? – Perguntou apurando os ouvidos.
- Um barulho...de pano rasgado... – E como quem lembra de alguma coisa Maria começou a chorar.
Dona Raimunda já alarmada, pôs-se a sacudir a menina:
- Que diabos tu tem, Maria? Ta ficando doida? Por que ta chorando agora?
Maria se afastou e se encolheu num canto do quarto.
- O meu vestido,... mãe! Aquele vermelho... de florzinha amarela! O... que eu... mais gosto.
- E o que é que tem o vestido menina? – Perguntou a mãe sem entender mais nada.
Maria com medo da reação da mãe, pôs-se a gaguejar ainda mais:
- Eu sei.... que é pecado.... A senhora me...avisou. Mas eu lavei.... o vestido hoje... botei pra secar... na cerca de arame... e esqueci de pegar.... Parece que... o bicho rasgou ele.
A mãe deu-lhe um cocorote na cabeça praguejando:
- Mas menina, tu ta doida? Tu não sabe que não pode trabalhar dia de hoje, trem ruim! – Benzeu-se pela imprecação. - Bem feito, pra tu, que ficou sem o vestido! Teu pai vai te esfolar o lombo quando souber, tu vai ver! É bom se preparar!
Maria chorava baixinho penalizada pelo vestido e por medo do que ela tinha quase certeza. Com tudo isso a noite passou elas não mais dormiram, e o dia amanheceu. Dona Raimunda foi pra cozinha fazer o café e Maria ficou de levar o urinol para despejar fora a urina da noite anterior. Com medo de sair no quintal, da janela da sala de dentro, jogou fora a urina. Sua mãe vendo deu-lhe uns tabefes:
- Tu toma vergonha! O quintal vai ficar numa catinga só! Ta com medo do lobisomem? Se foi ele, já foi embora sua boba, o sol já saiu.
Depois de alguns minutos seu Dezinho chamou na porta. Dona Raimunda correu a abri-la.
- Bom dia mulher! Bom dia Maria! – Cumprimentou-as entrando casa adentro indo na direção da cozinha. Tulipa o acompanhava – To doido por um café. Já coou?
Entraram todos para a cozinha. Dona Raimunda depositou na mesa o bule, as xícaras e um prato com bolo frito e beiju. Maria ficou olhando o pai com a cara assustada. Este não percebeu e abriu a boca para morder um beiju, foi aí que Maria viu nos dentes dele, pedaços pequenos de pano vermelho e amarelo.

Caetité, maio/junho de 1982.

quarta-feira, 15 de setembro de 2010

A SESTA NUM DIA DE SOL



Maria olhava para aquele ambiente amarelo-cinza a sua frente. Passava um pouco do meio dia e ela sentia aquela preguiça que sempre lhe tomava o corpo depois do almoço. Estava sentada, como sempre fazia naquele horário, debaixo de um velho pé de cedro em frente à sua casa. O tempo estava quente e abafado, mas vez ou outra a brisa balançava as altas galhas da árvore e lhe refrescava o calor. A claridade do espaço amarelo-cinza agredia-lhe os olhos. Não se via nada verde. Os poucos tons de ocre esverdeado que iam substituindo o verde deixado pela chuva, também já haviam sido devorados pelo amarelo-cinza. Junto com a sensação de exaustão e abandono causada por essa tonalidade e pela temperatura quente e abafada, Maria sentia uma espécie de secura e esvaziamento por dentro que lhe davam a impressão, de que a qualquer momento, ela iria deixar de existir. Olhou o céu. O azul pendia mais pro cinza-arroxeado: uma cor intensa, agressiva e opressora. Nenhuma nuvem. A claridade e intensidade daquela cor parada, morta lhe fizeram franzir os olhos. Maria bocejou. Suas pálpebras pesavam e a agradável sonolência dominava cada vez mais o seu corpo. Olhou e sorriu para os pequenos arbustos secos e retorcidos que se espalhavam pelo terreiro de sua casa.
Vez ou outra ouvia os movimentos da sua mãe dentro de casa. Naquele horário do dia Maria sentia-se quase particularmente feliz. Era um momento que ninguém a perturbava. Era um momento em que ela podia ficar sozinha, dedicar-se a si mesma e remexer em suas memórias, em suas idéias e em seus sonhos. Era um momento só seu onde ela podia ser ela mesma ou quem quisesse. Depois desse momento de autodedicação, Maria voltaria para uma rotina menos agradável: lavar a louça, varrer os terreiros da casa, dar comida aos porcos e lavar algumas peças de roupa.
Não mais resistindo ao sono Maria passou a mão pelo chão afastando alguns galhos caídos e se acomodou deitando-se. Suas pálpebras se fecharam e ela dormiu. Dormiu o seu sagrado sono de depois do almoço. Mais tarde seria acordada pela cadelinha do seu pai. Ela lhe lamberia as faces e se deitaria ao seu lado até que se levantasse e fosse para dentro de casa cuidar das tarefas.
Maria sonhou. Um sonho simples sem grandes pretensões: sonhou que a cadelinha do seu pai, era sua irmã, e no seu sonhou verificou que eram muito parecidas. No sonho, brincavam como faziam acordadas, à margem do riacho seco. Brincavam de cobrir com os dedos as inúmeras linhas deixadas pelas rachaduras da terra seca. Maria ficava encantada com aquelas rachaduras, pois formavam desenhos engraçados e estranhos.  Tulipa – a cadelinha de seu pai - atravessava o riacho sobre as linhas e Maria admirava as voltas que seu corpo dava para conseguir acompanhar aqueles desenhos. A chuva era por demais boa e esperada por todos, trazia comida e água, mas levavam embora aquelas formas mágicas que faziam com que elas descobrissem figuras misteriosas. O consolo era que com a próxima seca, outros desenhos estariam lá para serem descobertos por elas. Maria não entendia como ela conseguia ver naquelas linhas tantas coisas conhecidas: vacas, galinhas, árvores, porcos. Acreditava que algum ser misterioso desenhava aquelas coisas para ela e Tulipa descobrirem. Aquilo era um mistério para Maria.
Acordou com Tulipa lhe lambendo o rosto. Sorriu para ela e a abraçou. Espreguiçou-se, olhou para o céu e levantou-se para mais uma tarde como todas as outras.

Caetité,  abril/maio de 1982.

sexta-feira, 2 de julho de 2010

A CACHORRINHA SEGURANDO VELA



Maria estava sentada no banquinho na sala de estar acompanhada da mãe. Seu pai caminhava para lá e para cá na calçada em frente à casa. De cinco em cinco minutos, mais ou menos, Maria se levantava e espichava o pescoço para o terreiro. Dona Raimunda, inquieta, alisava incansavelmente, a saia do vestido.
- Para menina! Fica quieta! Para com esse senta e levanta! Ta me agoniando!
Estavam todos com as melhores roupas e perfumados com água de cheiro.
Seu Dezinho num vai-e-vem sem fim soltava, uma atrás da outra, baforadas do seu cigarro de fumo bruto envolto em palha seca de milho. Já estava escurecendo. Olhou no relógio e constatou que faltavam poucos minutos para o horário marcado. Olhou novamente para a estrada e avistou ao longe o rapaz esperado, montado no lombo de um cavalo, que àquela distância, dava para perceber que era manco. “Inda vem montado num cavalo ruim! Ai ai... Isso não vai dar certo!”. Pensou.
O rapaz, de mais ou menos uns 23 anos, saltou do cavalo, tirou o chapéu e se aproximou vagaroso de seu Dezinho que não fazia a menor questão de esconder a cara feia.
- Boa tarde seu Dezinho! – Estendeu o rapaz, a mão suada e calosa. Seu Dezinho esticou a sua e num mal roçar, enfiou-a no bolso imediatamente. Olhou o cavalo e disse:
- Esse teu cavalo ta mancando! Machucou a pata?
- É. Pa...rece que sim! – o rapaz forçou um sorriso de desculpa. Devia ter vindo com um cavalo melhor. Pensou.
- Mas tu tem outro, ou só esse?
- Tenho. Tenho sim!
- Vamos entrando!- resmungou balançando a cabeça sem muito acreditar no rapaz.
Maria quando avistou ao longe o visitante, começou a tremer e a suar. Dona Raimunda pôs-se de pé e ficou a esperar. Beliscou Maria para que ela fizesse o mesmo. Esta, sentindo o coração bater forte e os joelhos moles, ficou em pé a pulso. Encostou-se na parede temendo cair.
Seu Dezinho surgiu na sala, acompanhado do rapaz que trazia nas faces intenso rubor. Convidou-o a sentar. Na sala, além do banquinho havia mais três cadeiras e o rapaz, nervoso, trêmulo, escolheu uma de couro já bastante velha, mas ainda muito resistente. Seu Dezinho, imediatamente, trouxe para cima dos olhos todo o couro da testa, pois naquela cadeira a única pessoa que se sentava era ele. Aquele velho objeto era de estimação, quase tanto quanto Tulipa sua cadelinha, pois era uma cadeira que pertencera a seu bisavô e foi passando de pai para filho. Não teve, porém coragem de pedir ao rapaz para se sentar em outra. Todos sentados, o silêncio tombou. Os minutos começaram a passar, até que dona Raimunda ofereceu um café e levantando-se saiu pros fundos da casa. Maria, querendo respirar um pouco e tirar do peito aquele peso que ali se alojara, acompanhou a mãe num passo apressado.
Seu Dezinho se vendo a sós com o moço, perguntou de chofre:
- Quais são suas intenções com minha filha? – Perguntou olhando firme para os olhos do rapaz.
O pobre moço, gaguejando com muito custo, conseguiu dizer:
- As melhores... seu Dezinho, as melhores...
- Isso não é resposta. Quero saber se é pra casar ou pra enrolar. Porque filha minha, cabra nenhum enrola, não!
O moço passou a mão na cabeça, agoniado.
- Claro... claro que é pra... casar. Eu... gosto muito... da sua filha.
- Então tá bom! Mas tu só vai botar a mão nela depois de casado. To avisando!
- Certo. Claro... nunca pensei... de outro jeito. Quero que a... nossa união... seja abençoada por... Deus...
- E por mim! – Mirou o rapaz de cima a baixo, pousou os olhos no centro do corpo do moço e disse: Se tu botar a mão nela antes de casar, te aviso: Tu não será homem nunca mais – Fez um gesto com a mão como quem corta alguma coisa. O rapaz engoliu o pouco de saliva que restava em sua boca seca, e mentalmente elevou uma prece a Deus.
Seu Dezinho espichando o pescoço na direção da porta gritou com aquela voz, dificilmente compreensível para os humanos.
- Maria! Chegue aqui!
No mesmo instante, Maria surgiu cabisbaixa, com as faces rubras.
- Me chamou pai?
- Chamei. – Olhou para o rapaz, para ela e continuou - O moço aqui me pediu tua mão. Vocês vão se conhecer um pouco e depois vamos marcar a data do casamento.
Maria sorriu com a cabeça enfiada no peito.
-Senta aí e pode conversar!
Maria sentou-se no banquinho, juntou as pernas e puxou a saia do vestido para cobrir os joelhos. Ainda de cabeça baixa, vagarosamente, levantou os olhos na direção do rapaz e sentindo sobre si os olhos dele, imediatamente recolheu os seus por sob as pálpebras. Olhou na direção do pai e viu que este olhava para um e para o outro enquanto acendia outro cigarro. O tufo de fumaça encheu a sala e o odor do fumo queimado penetrou as narinas de Maria dificultando-lhe ainda mais a respiração.
Dona Raimunda chegou trazendo na bandeja quatro xícaras pequenas esmaltadas com a cor verde e um bule de igual material. Colocando o serviço numa mesinha encostada a uma parede, onde havia uma quantidade razoável de quadros de santos e alguns retratos da família, serviu o café. Serviu primeiro ao rapaz, depois a Dezinho, à Maria. Em seguida pegou a sua xícara e se sentou numa cadeira próxima ao marido. Beberam em silêncio.  Ouviam-se apenas os chupados que seu Dezinho dava em sua xícara. Depois de alguns minutos ela o cutucou discretamente chamando-o para saírem dali e deixarem os dois jovens a sós. Ele olhou-a assustado:
- Quê que tu quer?
- Quero falar uma coisa! Vamos lá na cozinha –sussurrou
- Como é que eu deixo os dois aqui... – disse ele numa voz estridente, mas acreditando sussurrar.
- Vem cá homem! Deixe de conversa! – A velha tomou-lhe a mão e se levantou. Ele seguiu-a resmungando. Chegando na cozinha ele estacou e disse:
- Já sei! Cadê Tulipa? Tulipa! Oh Tulipa!
A cachorrinha surgiu abanando o rabo e cheirando-lhe os pés encardidos.
Ele se agachou e cochichou alguma coisa no ouvido da cadela. Esta, obediente, seguiu em direção à sala e lá entrando se deitou a um canto e pôs-se a encarar o casal que agora se encontrava sentado no mesmo banco.
- O que tu cochichou no ouvido da cachorra Dezinho? – Perguntou dona Raimunda
- Já que eu não posso ficar lá botando sentido nos dois, por causa da tua implicância, mandei Tulipa vigiar os dois pra mim.
Dona Raimunda soltou uma gargalhada.
- Tu já ta é caducando! Onde já se viu uma cachorra botar sentido num casal Dezinho! Tu é besta mesmo! O que esses dois pode fazer lá na sala com a gente aqui, homem?! – Sacudia o corpo com o riso – E tu acha que Tulipa vai te contar o que eles estão fazendo, o que estão conversando?
- Ela me conta sim! Tulipa não é uma cachorra como as outras, tu sabe disso! E pare de ficar relinchando!
- Dezinho, larga mão de ser besta! Tu não lembra que a gente ficava lá na casa de pai e que não aconteceu nada! Eles precisam conversar sozinhos pra se conhecer. Com a gente foi assim também. E eu casei pura!
- Porque eu tinha medo do teu pai! – Ele fez uma cara que para ele era uma cara de riso. Pois ele nunca ria, vivia sempre zangado.
Dona Raimunda riu e concluiu:
- Vamos deixar os dois lá quietos. Nossa filha já tá passando da idade de casar. Tá com mais de dezenove e, além do mais, coitada, ela puxou a cara da tua mãe, então temos que dar graças a Deus por esse rapaz ter se engraçado com ela.
- Tu não perde ocasião de dizer que mãe era feia!
- Tua mãe, Dezinho, minha finada sogra que Deus a queira ter para sempre no Reino da Glória, amém!– benzeu-se olhando pras telhas da cozinha – não era feia. Ela era medonha!
- Humff! – Rosnou. Depois encarando-a com a cara ainda mais fechada concluiu - Vamos deixar mãe quieta lá com Deus! – Benzeu-se.
Ou com o cão – pensou dona Raimunda
Na sala o casal ensaiava uma tímida conversa. Ele pegou a mão de Maria na sua e pressionou-a levemente. Ela estremeceu ao sentir aquele contato caloso e suado. Tulipa no mesmo instante ergueu a cabeça e levantou as orelhas.
- Parece que ela não gostou que eu peguei na tua mão. – Observou o rapaz intrigado.
- Liga não. Foi pai que mandou ela vigiar nóis. Ele pensa que ela sabe das coisas... e que pode falar com ele...
- E ela sabe? Vai ver ele entende a fala dela...
- Tu já viu cachorro falar? – Perguntou Maria olhando-o encantada.
- É, nunca vi – admitiu encarando Tulipa. –Mas já pensou se ele entende o que ela fala...! Vai ver ele tem parte com o coisa ruim... E se ela contar?
Maria já um tanto solta se sacudiu de rir. Olhou para Tulipa e piscou um olho.
Tulipa retribuiu a piscada, olhou novamente para ele sorriu e fechou os olhos. Ia colaborar com Maria, pois sentiu que o rapaz tinha um bom coração.

sexta-feira, 19 de março de 2010

ROMUALDO, O PEREGRINO.


Texto escrito em julho de 2009.


A casa, que àquela hora da tarde estava com todas as portas e janelas abertas, abrigava uma quantidade enorme de gente. Ao longo das paredes das duas pequenas salas estavam distribuídas cadeiras e bancos, todos ocupados com os visitantes. Havia um maior número em pé, não só dentro da casa, como no terreiro da frente e do fundo. Muitos sentados nas calçadas, bebendo aguardente, fumando, tomando café e comendo bolacha palito, que vez ou outra, algumas mulheres serviam. No centro da sala principal havia dois bancos encostados um ao outro, cobertos com um lençol branco. Ali seria descansado o caixão do defunto que a empresa funerária iria dali a poucos minutos, trazer. A viúva, já um tanto avançada em anos, trazia o corpo trêmulo envolto num longo vestido preto e a cabeça num xale de indefinida cor. As amigas seguravam seu pranto, consolando-a com abraços, tapinhas nas costas e muitas xícaras de chá calmante. Todas em seus vestidos de velório e tendo, constantemente, as mãos ocupadas pelos terços que iriam debulhar quando o finado chegasse. A ladainha, pronta a saltar-lhes dos lábios, deixava-as impacientes com o corpo que tardava a chegar. Esses momentos, naqueles confins do sertão, eram eventos onde elas podiam exercitar seus gogós na cantoria e reafirmar, perante Deus, o status de boas cristãs. Os filhos, muitos, se apoiavam encorujados às paredes já encardidas e rotas, que deixavam à vista, aqui e ali, tijolos de adobão.
Ao longe se ouviu um ronco de motor e todos viram, envolto numa gigante nuvem de poeira, o rabecão preto brilhando à luz do sol da tarde.
Mais cedo na cidade, na empresa funerária, os últimos preparativos com o corpo estavam sendo feitos. Romualdo, um dos responsáveis pelo despacho dos defuntos, verificava o endereço de cada um. Concluiu que tudo estava em ordem e providenciou o embarque. Naquele dia houve pouco movimento, apenas três mortes lhes requisitaram os serviços. Entrou no rabecão que iria levar o presunto para a roça mais distante. Gostava de cuidar pessoalmente de alguns casos, pois prezava muito seu emprego, já que na maioria das vezes, se metia sem querer, em situações que lhe impediam a permanência num trabalho por muito tempo. Considerava-se um azarado nesse aspecto, pois já perdera a conta de por quantos empregos peregrinara. Com aquele, até o momento, estava dando tudo certo e o trabalho, apesar de ser um pouco desagradável, – ficar às voltas com finados – não era dos piores. Até que estava gostando.
Ele e o motorista, de longe avistaram o povaréu que se agrupava em frente à casa. Romualdo já sabia de antemão tudo o que ia acontecer: a mulher desmaiando, os filhos gritando, os compadres e as comadres ressaltando, em meio a lágrimas, - muitas de crocodilo - qualidades que nunca antes foram notadas no defunto. Quase todo mundo depois que morre vira santo, pelo menos por algum tempo, concluíra Romualdo em suas muitas freqüências a velórios.
Entraram com o corpo e a viúva pôs uma mão no peito e, se certificando de que as amigas estavam por perto, se preparou para o desmaio. Não chegou a cair, pois braços, mais do que ligeiros, a apoiaram. Respirou fundo e as amigas a acompanharam até o caixão que agora já se encontrava sobre os dois bancos. Romualdo desparafusou a tampa e lentamente a ergueu. Ouviu-se por toda a sala:
- Oohh! Meu Deus que horror!
- O que aconteceu com o compadre?
- Mas ele ficou tão mudado! Olhe só, Tião!
- Isso foi porque bebia demais! A bebida altera o corpo todo! Credo em cruz! Está irreconhecível!
- Esse não parece o compadre! Será que foi o espanto ao ver a cara da morte?
- Isso é o fim dos tempos! Não te falo sempre que o mundo está perto de acabar? Isso só acontece por causa dos pecados dos homens!
A pobre viúva se aproximou e sentiu fugir-lhe do rosto todo o sangue e sentiu também que a alma abandonava-lhe o corpo. Pálida como uma flor de algodão, encarou Romualdo, que inocente, não compreendia a cara de espanto dos presentes:
- Seu Romualdo, que brincadeira é essa? O senhor deu banho de cal no meu marido?- Gritou a mulher partindo pra cima dele – Olhe pra mim, olhe pros meus filhos! Meu marido era negro como eu, negro como os nossos filhos! Porque me trouxe esse defunto branco, parecendo uma cera? – Dizendo isso, levou novamente a mão ao peito, mas dessa vez não esperou as amigas, porque o desmaio foi verdadeiro.
Romualdo, depois de um tempo para processar o que estava acontecendo, se deu conta de que trocara o defunto, de que trouxera para aquela viúva o defunto errado. Mas, ainda assim, a única preocupação que lhe nublou o semblante foi ter a certeza de que, assim que retornasse à cidade, daria início a uma nova peregrinação.

quinta-feira, 18 de março de 2010

A PRIMEIRA NOITE DE TERTO



Texto escrito em maio de 1984

Chamavam-no de Terto. Terto de Tertulino seu pai e de seu avô. Ele já contava com 45 anos de idade e nunca na vida se envolvera com uma mulher. Não que não tenha sentido vontade, mas as circunstâncias da vida e a timidez sempre se interpuseram em seu caminho. Dentro dessas circunstâncias estava sua mãe. Acreditava, ele, depois de muito tempo, que ela fora o grande obstáculo para a entrada dele no mundo dos homens. Não só o grande, como talvez o único. “Mas também nessa altura da vida não adiantava lamentar nem culpar ninguém”. Pensava de vez em quando. Vez ou outra se pegava odiando a mãe, até mesmo desejando que ela morresse, porque só assim, acreditava, estaria livre e desimpedido para seguir seu caminho. Mas que caminho? Que rumo poderia tomar depois que ela se fosse se o tempo passou e ele não construiu sua vida? Dizia seu pai quando vivo que para um homem começar a trilhar os caminhos do seu destino, antes de tudo, tinha que conhecer o calor de uma mulher. E isso, definitivamente, Terto não conhecia. Naquela manhã acordara disposto a por um fim em todo esse tormento. Dessa vez iria sim conhecer os mistérios do mundo dos homens. Passara em frente à casa da mulher-mestra naqueles assuntos. A mestra de todos os meninos daquele pequeno vilarejo. Ela tinha quase certeza de que ele era desconhecedor do assunto porque nunca experimentara de sua cama. Sempre que o via perguntava quando ia visitá-la. Ele não respondia enrubescendo até a raiz dos cabelos e ficando fulo de ódio e vergonha. Ela sempre estava na janela àquela hora, mas justamente naquele dia, o dia em que ele criara coragem para se aproximar o diabo da mulher achou de não aparecer. Será que ele tinha dado alguma demonstração de que resolvera ir até lá ou será que ela tinha parte com o diabo e este a avisara de que ele iria? E ela para deixá-lo aperreado, se escondeu? Vá saber! De repente morreu ou caiu de cama com alguma enfermidade. É, pra ele não tinha jeito mesmo! Pensou desgostoso. Se essa peste de mulher resolvesse se aposentar o que ele iria fazer para sair da amargura de trazer estampada na testa a marca da donzelice? Entrou no boteco em frente à casa dela e pediu uma dose de pinga. Era bom esperar um pouco, de repente ela pode só ter ido ao banheiro, ponderou levando o copo aos lábios. Virava e mexia olhava pra casa da mulher. O dono do boteco percebendo sua inquietude se aproximou da mesa, puxou uma cadeira e se sentou. Olhou na direção da casa da mulher e sem dar conhecimento de que suspeitava do motivo da sua estada ali, comentou: _Ela não apareceu na janela hoje. Fiquei sabendo que viajou. Foi pra capital. Dizem que não volta mais. Foi morar com a filha. Cansou-se da vida que levava. Já tava exausta. Não tava mais agüentando agasalhar os moleques e até mesmo os homens feitos. Olhou pra Terto e piscou um olho. _Foi embora sem avisar ninguém. De certo não quis se despedir. Terto virou o resto da pinga e saiu mudo. Andou a esmo pelas pequenas e estreitas ruas do povoado. Um misto de raiva e frustração machucou-lhe o peito. Ele como sempre não sabia utilizar as horas e os dias de sua vida. Quanto tempo essa mulher morou ali? Desde que ele era moleque. Todos os seus colegas foram até ela. Hoje muitos já estavam casados, outros solteiros, mas tinham suas mulheres. E ele? Um atoleimado, um bocó. Merecia isso mesmo. Morrer donzelo, feito uma beata velha, cujo destino era só cuidar da mãe. A manhã passou, e ele continuou andando a esmo. Entrou a tarde e quando esta já despencava no horizonte resolveu tomar o rumo de casa. Morava a uns 10 km do povoado. Montou no lombo da égua e deu início a um trote vagaroso. As histórias de seus colegas de infância e juventude acudiam-lhe à lembrança. Muitos se iniciaram com a tal mulher, outros com as irmãs, outros com as primas, outros com as tias. Mas o certo é que todos se iniciaram. Outros se iniciaram até com as vacas e ovelhas das fazendas. Ele achava muito nojento se misturar dessa forma com os bichos. Mas, pensando bem, será que é tão nojento assim? De repente uma idéia lhe surgiu na cabeça como uma luz. Por que não com a sua égua? Ela era limpa, ele sempre cuidava dela com muito esmero. Dava-lhe banho constantemente. Era uma égua bonita. Não contavam os mais velhos e até os garotos que estudavam que existiu um imperador que fez de seu cavalo um senador? Porque ele não podia tomar a sua égua por esposa. À medida que aquela idéia ia se formando ele ia sentindo seu corpo reagir. Instintivamente foi apressando o passo e colocou a égua pra correr pra chegar logo em casa. Quando chegou deparou com a mãe à sua espera na porta da casa. Estava toda impaciente e o cumprimento foi uma repreensão. Quis saber a razão da demora. Pela primeira vez Terto não lhe deu importância. Nem se deu ao trabalho de lhe responder. Apressadamente tirou a sela do animal, jogou-a na calçada e se dirigiu em direção a uma manga bem distante da casa a fim de, para todos os efeitos, soltar a égua. Sua mãe ficou retrucando, mas ele não mais a ouvia. Estava feliz. Sentindo-se livre. Ia finalmente realizar um sonho acalentado por tantos anos. Perguntava-se como pudera ser tão bobo por não ter tido essa idéia antes. Mas nunca é tarde, animou-se. Nada mais iria lhe atrapalhar. De agora em diante pouco lhe importaria as implicâncias de sua mãe. Se ela quisesse urrar em seu ouvido, que urrasse. Ele já tinha alguém com quem se abrir, com quem poderia ser ele mesmo, Terto. Alguém que não reclamaria de nada. Alguém que estaria sempre pronta a lhe servir, a lhe ouvir sem lhe interromper e repreender. Alguém verdadeiramente sua amiga. Como ele fora bobo, tonto, um verdadeiro atoleimado por não ter pensado nisso antes. Quanto tempo perdido. Mas faria tudo para tirar o atraso. Atravessou a manga e levou a égua para um lugar um pouco mais adiante. Sabendo que não havia ninguém naquele momento para perturbá-lo, para vigiá-lo, envolveu a égua num abraço e começou a acariciá-la e beijá-la. A escuridão da noite fez com que ele se sentisse dono de si e senhor daquele animal indefeso que daquele momento em diante seria sua égua, sua “esposa”, sua “amante”. Iriam se amar só à noite. Seria o melhor momento. A luz do dia revela a timidez, a vergonha, o bom senso. À noite, o Terto que só ele conhecia poderia aparecer e se dedicar àquele momento mágico, só dele e da sua primeira e talvez única amante. Única, porque naquele momento ele não pensava em ter outra a quem amar. Naquele momento era o mais fiel e dedicado dos amantes. Durante o dia, o Terto bobo que todos conheciam, iria zelar da égua com muito mais dedicação e à noite o Terto, amante apaixonado iria amá-la. Mesmo em suas fantasias de adolescente nunca se sentira tão excitado como naquele momento. O instinto lhe guiou e fez com que conduzisse a égua a um lugar mais apropriado a fim de lograr o seu intento. O animal, dócil aceitou, e Terto pela primeira vez na vida soube o que é estar vivo

quinta-feira, 4 de março de 2010

A PRECE DE SEU QUINCAS NUM DIA DE CÃO


Conto escrito em maio de 1983.

Naquele dia, dia acalorado para Seu Quincas, foi um dia infernal. O corpo todo lhe doía, a febre consumia-lhe e a assadura lhe incomodava os fundos. Tudo isso porque uns dias atrás, nas suas andanças pela roça levou uma topada e saiu aos tropeções tentando se equilibrar, mas mesmo assim, beijou o chão e encheu a boca de terra e cisco. Levantou praguejando e cuspindo fora uma rama de mato que teimava em permanecer em sua boca. Levou a mão ao dedão do pé ao sentir a sandália molhada de sangue. A unha ficou com a metade suspensa. Teria que cortar fora o pedaço.

- Maldição! Praguejou mais uma vez. Aquilo ia ser uma papeira por muitos dias! Tirou a sandália e deixou sua cachorra lamber o sangue. O animal, não satisfeito apenas com o sangue da sandália, espichou a língua e lambeu-lhe o dedo machucado, arrancando-lhe um uivo de dor.

Sua esposa preparou uma papa de flor de malva, mastruz, sal e vinagre, mas pelo jeito não adiantou muito, já que dias depois o dedo já não tinha mais a aparência de dedo e sim, de uma cabeça de cobra, e das grandes! Como se não bastasse todo esse tormento, sendo obrigado a ficar de repouso, impedido de trabalhar, sua esposa, fazendo galhofa, lhe recomendou não sair de casa, pois perigavam as cobras se aproximarem, caçando amizade. Como a cabeça do dedo estava inchada e roxa, seus amigos lhe aconselharam a procurar um médico e, além do mais, a febre já lhe punha a bater queixo. Seu Quincas borrava nas calças ao imaginar se consultando com um médico. Aquele cheiro de hospital, aquela roupa branca de doer as vistas, aquela voz mansa, aquele cheiro de remédio que impregnava o médico lhe davam arrepios e lhe causavam enjoo. Mas, pelo jeito, tinha que ir ou então morreria de tétano. Da sua roça ao povoado distavam uns quinze quilômetros. Teria que montar no lombo do cavalo, pois não tinha carro nem dinheiro pra fretar um. Sem ter como apelar pra outro remédio, resolveu ir ter com o doutor. Foi dormir na véspera da consulta com um frio na barriga. Rolou na cama de um lado pra outro, mas não conseguia se agarrar ao sono. Depois de muito vai e vem, enfim conseguiu passar por uma breve modorra. Mais tarde, por volta da madrugada, acordou tremendo de frio e dor na barriga. Correu pra casinha que servia de sanitário e arriou as calças.
O produto da diarréia lhe desceu pelas vias inferiores, como se fosse um braseiro, numa ardência terrível. Puxou pela memória e lembrou que não havia comido pimenta nem naquele dia, nem no dia anterior. Estranhou, pois só sentia queima ao defecar quando comia pimenta. Agora mais essa: além do dedo doente e da febre, essa disenteria fora de hora. Com certeza, depois dessa via crucis noturna, iria ter assaduras, que certamente se agravaria com os solavancos da viagem no lombo do animal. O suor começou a descer em bicas e a expulsão dos gases assustou os cachorros que se puseram a latir. Depois de mais alguns minutos purgando seus pecados, Seu Quincas se ergueu e retornou ao quarto. Deitou na cama vagarosamente pra não acordar a mulher que dormia o mais tranqüilo dos sonos. Puxou a coberta até o queixo e ficou quietinho pedindo a Deus que a diarréia não voltasse a atormentá-lo, pelo menos até o raiar do dia. Ficou cismando em como seria dolorosa a travessia até o povoado. Não podia se esquecer de pedir à esposa para lhe passar um pouco de polvilho nas partes íntimas, para prevenir as assaduras, antes da viagem. Será que teria muito que esperar na fila, meu Deus? Fila de médico é sempre muito comprida! Ainda mais que o doutor só atendia lá uma vez por semana! Se assim fosse, com certeza, preferia morrer a sofrer tamanha ansiedade! Nada pior do que esperar por um tormento sabendo que não tem como evitá-lo. Se Deus lhe concedesse uma ajuda para que não precisasse ir ao médico! E se esse doutor cismasse em lhe arrancar a unha que estava encravada na carne? Só de pensar o estômago contraía. Preferia morrer. O galo cantou e a esposa meteu os pés e levantou. Olhou pro marido e se lembrou que teria que acompanhá-lo ao médico. Foi pros fundos da casa lavar o rosto e cuidar do café. Seu Quincas levantou fraco e tremendo de frio. A noite anterior voltou-lhe à memória e ele correu a pedir à esposa para lhe passar o polvilho.

- Criatura! Passe um pouco de polvilho no meu traseiro. Tá uma queimação dos diabos!

Esta se prestou a lhe atender. Fez-lhe deitar-se de bruços e untou-lhe as nádegas com o polvilho de tapioca. Em seguida dissolveu um pouco num copo d’água e deu-lhe de beber, pois além de assadura, era eficaz também para disenteria.

- Jesus, homem de Deus! Isso tá quase na carne viva. O que foi que tu andou fazendo pra assar esse traseiro desse jeito?
- Não sei. To estranhando, pois não comi pimenta esses dias...

Depois de alguns minutos gastos nos últimos preparativos da viagem, Seu Quincas já se sentia exausto. Não conseguiu fazer o desjejum direito. Mal bebericou um gole de café preto. As forças abandonavam seu corpo. Subiu no cavalo e se pôs em marcha com a esposa na garupa. Eram 3 horas da manhã e teriam que andar depressa para chegar o mais rápido possível ao povoado. O cavalo começou a andar num trote rápido e regular. Como era muito cedo, apenas o barulho dos cascos do animal se fazia ouvir, sendo interrompido vez ou outra, por um canto de galo, pássaros ou urro de algum jumento. Com o balanço da montaria Seu Quincas sentia náuseas e tontura. A manhã que surgia pareceu-lhe com uma cor estranha: de um amarelo pálido e cinzento. A boca amarga e seca aumentava a sensação de mal estar. Quando o sol já ia um pouco alto, teve a ligeira impressão de que a manhã se apagara e que ele tinha se ausentado dali. Sacudiu a cabeça, apertou os olhos e imaginou que aquilo devia ser porque estava com o estômago vazio. O dedo latejava. A faixa limpa que usava para cobri-lo, já estava toda empoeirada. Levantou a perna e apoiou o pé no cabeçote da sela. Sentiu os fundos arderem. A assadura se instalou de vez. De nada adiantou o polvilho, já que teve que se balançar em cima do animal. A lembrança do médico vinha-lhe à mente, mas tentava espantá-la prestando atenção à paisagem, porém de nada adiantava, já que aquelas paragens lhe eram tão familiares. De repente parou e disse à esposa que não ia mais. Ela rosnou e tocou o cavalo que voltou a andar. Seu Quincas deixou-se levar. Foi sentindo as forças lhe abandonarem. Parecia-lhe que se distanciava do mundo. Dali. A esposa ia ficando longe. Ia sentindo um sono. “Se pudesse dormir sobre o cavalo sem o perigo de cair, seria tão bom!”. Novamente veio aquela estranheza. A manhã se apagando e ele se ausentando de si. Nessa altura, já estavam próximos do povoado. Seu Quincas, percebendo a aproximação, desejou uma mãozinha de Deus. Preferia morrer a ir a um médico. Sempre foi assim, desde pequeno tinha medo daquela roupa branca de doer as vistas. Mais alguns minutos de trote entraram no povoado. O pequeno posto de saúde ficava logo na entrada. Deu pra ver a fila. Um montueiro de gente. Seu Quincas sentiu o mundo desabar sobre suas costas. Não tinha jeito pra ele. Ia ter que esperar na fila, naquele sol abrasador. E o dedo que não parava de latejar! O pé já estava todo preto. Preto de inchado. A febre que não cedia! O sol brilhando de quente e ele tremendo de frio! Parou o cavalo e desceu. Se não fosse um amigo e a esposa tinha caído do animal ao descer. Encostou-se à parede do posto e se pôs a esperar enquanto a mulher foi fazer a ficha. Depois de alguns minutos em pé com as costas apoiadas à parede foi se derreando, derreando e sentou-se no chão. Suava como um cuscuz. A manhã novamente apagou. O povo todo e o amigo desapareceram. Ele novamente se ausentou. Uma sensação rápida, mas estranha. Apercebeu-se de si com a mulher lhe cutucando e lhe mandando ficar de pé. Mal ouviu o que ela dizia. Suas pálpebras pesavam e tudo ia ficando distante mais uma vez. Ela tornou a lhe cutucar. Abriu os olhos com grande esforço e tentou olhar para ela, mas a claridade da manhã o impediu. Ela desistiu e ficou em pé ao seu lado. A fila ainda estava grande. Pediu um pouco d´água à mulher. Ela abriu a sacola, destampou uma garrafa e lhe deu um pouco. Sentiu-se quase feliz e descansado com aquele pouco de água. Tão bom aquele contato frio na sua boca seca! Sorriu pro nada e mais uma vez acalentou a esperança de não precisar se consultar. A fila tava tão grande! Quem sabe o doutor desistiria de atender aquele povaréu todo? Mas se não desistisse, ele, Quincas preferia morrer. Sorriu de novo. Um riso vazio e pro nada. De novo a manhã se apagou e ele se sentiu longe. Levou a mão para tocar a esposa, pois ela pareceu afastar-se dele muito rapidamente. E lá estava ela, longe, muito longe. Ela foi sumindo, sumindo, juntamente com a claridade da manhã até que seu Quincas não viu mais nada.
Deus atendeu a sua prece.