quarta-feira, 17 de novembro de 2010

LUA CHEIA NA SEXTA-FEIRA DA PAIXÃO



A tarde já despencava no horizonte e o céu estava tingido de um laranja avermelhado prenunciando uma noite fria. Já se podia ver algumas estrelas e a enorme lua cheia. Maria e sua mãe Dona Raimunda estavam, ambas, debruçadas na mesma janela, observando a estrada na esperança de ver surgir, na curva que se formava próximo a um pé de jatobá, seu Dezinho que desde cedo fora para o vilarejo. Maria não fora naquela sexta-feira porque era Semana Santa e não tinha feira.
Já estavam ali há um bom tempo e Maria já se sentia agoniada suspeitando do que ela sempre desconfiava, mas que ainda não tivera coragem de confessar à mãe.
- Vamos entrar mãe! Vamos entrar e fechar bem as portas e janelas! – Implorou Maria olhando o céu e fixando a lua cheia que tal e qual um queijo grande e amarelado pairava pendurada no céu gigantesco, estrelado e frio.
Dona Raimunda olhou-a intrigada e percebeu que os olhos da filha estavam arregalados e que seu queixo tremia.
- Esse bate-queixo é de frio, Maria? Não tá frio pra bater queixo, não! – Tocou-a na testa – Será que tu ta com febre? Não, não tá. – Constatou. Olhou mais uma vez para a estrada, balançou a cabeça e se afastou para fechar a janela – Vamos, vamos entrar. Teu pai não vem mais não. Já escureceu mesmo! Ele tem essa mania de toda Sexta-feira Santa descambar pra cidade e só voltar no outro dia! Todo ano é isso!
Fechou as janelas, verificou a porta da rua e do fundo da casa, todas de madeira reforçada e com taramelas.
- Pelo menos o madeiramento da casa ele soube escolher! É um homem tão lambanceiro, tão descuidado com a casa, que não sei por que milagre não botou umas madeiras podres pra proteger a casa.
Olhou de novo pra Maria que estava encorujada num banco tremendo igual a uma vara verde.
- O que é que tu tem menina! Não vai adoecer agora, pelo amor de Deus!Vê que tamos sozinhas aqui! Não tem viv´alma num raio de quase meia légua! Pare com essa tremedeira!
- Não to doente não, mãe. Só não to conseguindo parar de bater o queixo. Deve ser por causa do jejum!
- É pode ser! – Colocou a mão no queixo e pôs-se a cismar por alguns minutos, depois como quem decide falou - Pra tu não adoecer, Deus não vai se importar se a gente quebrar o jejum só com um gole de café. – Olhou pra cima e fez o sinal da cruz - Vem, vamos pra cozinha tomar só um tiquinho. O fogo ainda ta aceso e lá tu para com esse treme-treme – saiu pros fundos da casa acompanhada de uma Maria acabrunhada e apavorada.
Entraram na cozinha e Dona Raimunda acendeu o fifó num tição de lenha. Maria puxou o banquinho pra perto do fogão. Acomodou-se colocando os dois pés em cima e cobrindo as pernas com a saia do vestido. Com mãos geladas recebeu a xícara de café que sua mãe lhe estendia. Tirou um gole e ficou olhando aquela xícara de esmalte verde já com algumas partes descascadas pelos anos de existência. Virou pra mãe com os olhos espichados:
- Será que o pai ainda vem? Queria dormir com a senhora, mas tenho medo de que ele chegue e brigue comigo!
Dona Raimunda estalou a boca, sacudiu a cabeça e concluiu:
- Que importa! Ele briga de qualquer jeito. Briga por tudo e por nada! Uma briga a mais ou a menos não faz diferença! – Chupou um gole de café da xícara e perguntou: -Melhorou a tremedeira? Que diabos será isso? – Benzeu-se pelo nome pronunciado - Tu andou nadando no rio até que hora, Maria?
- Eu não nadei mãe! O rio ta quase seco, esqueceu?
A velha fingiu que não ouviu e olhando pro telhado e observou: - Já deve ser tarde. Teu pai não vem mais não. Veja a lua, já ta subindo. Maria ergueu a cabeça e viu por algumas frestas no telhado que a lua já tinha alcançado um ponto um tanto alto no firmamento. Ficaram ali por um bom tempo tomando café. O tiquinho acabou secando o bule que estava cheio.
- Vamos deitar e tentar dormir – Disse Dona Raimunda decidindo –se e indo em direção à porta.
Maria de pronto a acompanhou. Saíram da cozinha e foram direto para o quarto. Maria de imediato se abaixou e tirou de debaixo da cama um urinol esmaltado de branco e se agachou pra urinar. Sua mãe olhou-a com um ar de repreensão e esbravejou:
- Por que tu não fez no quintal Maria, antes da gente vim deitar? Vai encher o penico antes da hora.
- Eu faço pouquinho mãe. Não to com muita vontade. É só pra não ter que levantar mais tarde. – O queixo de Maria ainda batia, sua mãe percebeu pela voz tremida.
- Credo em cruz menina! Segunda-feira, se tu não melhorar, vou ter que te levar no médico. Isso não pode ser por causa do jejum, não, senão eu também estaria tremendo! T´esconjuro, deve ser alguma coisa do outro mundo! Será que tu tá com algum encosto?
Maria deu de ombros e levantando-se empurrou o urinol para debaixo da cama e se deitou encolhendo debaixo da coberta. Sua mãe já se ajeitava por sua vez, pondo-se a debulhar o terço, como fazia todas as noites e principalmente naquela que era uma noite santa. As horas foram passando e Maria sem ainda conciliar o sono viu quando sua mãe findou as orações e se deitou logo de imediato pondo-se a puxar um ronco acompanhado de um som semelhante a um assovio. Maria, prestando atenção aos sons do sono da mãe, dormiu. Depois de alguns minutos um uivo longo e doloroso assustou-as fazendo-as acordarem com os corações aos pulos.
- Valei-me Nosso Senhor Jesus Cristo! Foi tu Maria? – Benzeu-se Dona Raimunda fazendo o sinal da cruz. Tateou a cabeceira da cama atrás do terço. Encontrando-o, mais do que depressa se pôs a debulhá-lo novamente.
- Deus me livre mãe! Eu não! – Maria puxou a coberta até o queixo apoiado sobre os joelhos e ficou a esperar. Sabia que alguma coisa estranha estava acontecendo. Daí a pouco novo uivo, dessa vez, mais próximo e mais forte, mas ainda lamentoso e longo.
- É um lobisomem, mãe! – Apostou Maria num fio de voz, continuando a bater queixo.
- Será?! Valei-me Nossa Senhora! E Dezinho que não chega!
Ficaram mudas e imóveis. Não tinham coragem de mover um músculo. Apenas Dona Raimunda que movia os lábios em oração. Maria procurava evitar até os pensamentos com medo de ser adivinhada. Começaram a ouvir passos. Os passos pareciam rodear todo o terreiro e quando se aproximavam da casa, paravam na porta da frente. Ouviram também o farejar que parecia ser de um cão. Maria ouvia as pancadas do próprio coração e tinha a sensação de este ia lhe sair pela boca. De repente o animal, ou fosse lá o que fosse, começou a arranhar a porta.
- Meu Deus, o que será isso, meu Jesus! – Apelou Dona Raimunda. Olhou para Maria e viu que esta estava pálida e imóvel como uma estátua. Sacudiu-a.
- Calma Maria! Não há de ser nada! – Dona Raimunda, também apavorada, tentava acalmar a pobre da menina.
Começaram a ouvir ao longe um latido de cachorro, só que um latido familiar.
-É o latido de Tulipa, não é? – Dona Raimunda se levantou indo em direção à janela. Maria saltou sobre ela:
- Não abre mãe! Não abre! – Seus dentes chocavam-se uns com os outros incontrolavelmente.
- Mas menina, deve ser teu pai que vem chegando! Tu não ta ouvindo o latido de Tulipa?– Vendo o terror da filha a mulher concordou – Está bem. Se for teu pai quando ele chegar ele chama na porta.
O latido da cachorrinha se fez ouvir mais perto e mais perto, mas logo em seguida ouviram apenas um ganido baixinho depois, o silêncio.
Ficaram ali sentadas na cama orando por mais algum tempo até que Maria deu outro pulo da cama assustada.
- Que foi agora menina! O bicho não uivou não!
- A senhora não ouviu? – Conseguiu dizer tentando trincar os dentes.
- Não ouvi o quê, menina? – Perguntou apurando os ouvidos.
- Um barulho...de pano rasgado... – E como quem lembra de alguma coisa Maria começou a chorar.
Dona Raimunda já alarmada, pôs-se a sacudir a menina:
- Que diabos tu tem, Maria? Ta ficando doida? Por que ta chorando agora?
Maria se afastou e se encolheu num canto do quarto.
- O meu vestido,... mãe! Aquele vermelho... de florzinha amarela! O... que eu... mais gosto.
- E o que é que tem o vestido menina? – Perguntou a mãe sem entender mais nada.
Maria com medo da reação da mãe, pôs-se a gaguejar ainda mais:
- Eu sei.... que é pecado.... A senhora me...avisou. Mas eu lavei.... o vestido hoje... botei pra secar... na cerca de arame... e esqueci de pegar.... Parece que... o bicho rasgou ele.
A mãe deu-lhe um cocorote na cabeça praguejando:
- Mas menina, tu ta doida? Tu não sabe que não pode trabalhar dia de hoje, trem ruim! – Benzeu-se pela imprecação. - Bem feito, pra tu, que ficou sem o vestido! Teu pai vai te esfolar o lombo quando souber, tu vai ver! É bom se preparar!
Maria chorava baixinho penalizada pelo vestido e por medo do que ela tinha quase certeza. Com tudo isso a noite passou elas não mais dormiram, e o dia amanheceu. Dona Raimunda foi pra cozinha fazer o café e Maria ficou de levar o urinol para despejar fora a urina da noite anterior. Com medo de sair no quintal, da janela da sala de dentro, jogou fora a urina. Sua mãe vendo deu-lhe uns tabefes:
- Tu toma vergonha! O quintal vai ficar numa catinga só! Ta com medo do lobisomem? Se foi ele, já foi embora sua boba, o sol já saiu.
Depois de alguns minutos seu Dezinho chamou na porta. Dona Raimunda correu a abri-la.
- Bom dia mulher! Bom dia Maria! – Cumprimentou-as entrando casa adentro indo na direção da cozinha. Tulipa o acompanhava – To doido por um café. Já coou?
Entraram todos para a cozinha. Dona Raimunda depositou na mesa o bule, as xícaras e um prato com bolo frito e beiju. Maria ficou olhando o pai com a cara assustada. Este não percebeu e abriu a boca para morder um beiju, foi aí que Maria viu nos dentes dele, pedaços pequenos de pano vermelho e amarelo.

Caetité, maio/junho de 1982.