A
tarde já despencava no horizonte e o céu estava tingido de um laranja
avermelhado prenunciando uma noite fria. Já se podia ver algumas estrelas e a
enorme lua cheia. Maria e sua mãe Dona Raimunda estavam, ambas, debruçadas na
mesma janela, observando a estrada na esperança de ver surgir, na curva que se
formava próximo a um pé de jatobá, seu Dezinho que desde cedo fora para o
vilarejo. Maria não fora naquela sexta-feira porque era Semana Santa e não
tinha feira.
Já
estavam ali há um bom tempo e Maria já se sentia agoniada suspeitando do que
ela sempre desconfiava, mas que ainda não tivera coragem de confessar à mãe.
-
Vamos entrar mãe! Vamos entrar e fechar bem as portas e janelas! – Implorou
Maria olhando o céu e fixando a lua cheia que tal e qual um queijo grande e
amarelado pairava pendurada no céu gigantesco, estrelado e frio.
Dona
Raimunda olhou-a intrigada e percebeu que os olhos da filha estavam arregalados
e que seu queixo tremia.
-
Esse bate-queixo é de frio, Maria? Não tá frio pra bater queixo, não! – Tocou-a
na testa – Será que tu ta com febre? Não, não tá. – Constatou. Olhou mais uma
vez para a estrada, balançou a cabeça e se afastou para fechar a janela –
Vamos, vamos entrar. Teu pai não vem mais não. Já escureceu mesmo! Ele tem essa
mania de toda Sexta-feira Santa descambar pra cidade e só voltar no outro dia!
Todo ano é isso!
Fechou
as janelas, verificou a porta da rua e do fundo da casa, todas de madeira
reforçada e com taramelas.
-
Pelo menos o madeiramento da casa ele soube escolher! É um homem tão
lambanceiro, tão descuidado com a casa, que não sei por que milagre não botou
umas madeiras podres pra proteger a casa.
Olhou
de novo pra Maria que estava encorujada num banco tremendo igual a uma vara
verde.
- O
que é que tu tem menina! Não vai adoecer agora, pelo amor de Deus!Vê que tamos
sozinhas aqui! Não tem viv´alma num raio de quase meia légua! Pare com essa
tremedeira!
-
Não to doente não, mãe. Só não to conseguindo parar de bater o queixo. Deve ser
por causa do jejum!
- É
pode ser! – Colocou a mão no queixo e pôs-se a cismar por alguns minutos,
depois como quem decide falou - Pra tu não adoecer, Deus não vai se importar se
a gente quebrar o jejum só com um gole de café. – Olhou pra cima e fez o sinal
da cruz - Vem, vamos pra cozinha tomar só um tiquinho. O fogo ainda ta aceso e
lá tu para com esse treme-treme – saiu pros fundos da casa acompanhada de uma
Maria acabrunhada e apavorada.
Entraram
na cozinha e Dona Raimunda acendeu o fifó num tição de lenha. Maria puxou o
banquinho pra perto do fogão. Acomodou-se colocando os dois pés em cima e
cobrindo as pernas com a saia do vestido. Com mãos geladas recebeu a xícara de
café que sua mãe lhe estendia. Tirou um gole e ficou olhando aquela xícara de
esmalte verde já com algumas partes descascadas pelos anos de existência. Virou
pra mãe com os olhos espichados:
-
Será que o pai ainda vem? Queria dormir com a senhora, mas tenho medo de que
ele chegue e brigue comigo!
Dona
Raimunda estalou a boca, sacudiu a cabeça e concluiu:
-
Que importa! Ele briga de qualquer jeito. Briga por tudo e por nada! Uma briga
a mais ou a menos não faz diferença! – Chupou um gole de café da xícara e
perguntou: -Melhorou a tremedeira? Que diabos será isso? – Benzeu-se pelo nome
pronunciado - Tu andou nadando no rio até que hora, Maria?
-
Eu não nadei mãe! O rio ta quase seco, esqueceu?
A
velha fingiu que não ouviu e olhando pro telhado e observou: - Já deve ser
tarde. Teu pai não vem mais não. Veja a lua, já ta subindo. Maria ergueu a
cabeça e viu por algumas frestas no telhado que a lua já tinha alcançado um
ponto um tanto alto no firmamento. Ficaram ali por um bom tempo tomando café. O
tiquinho acabou secando o bule que estava cheio.
-
Vamos deitar e tentar dormir – Disse Dona Raimunda decidindo –se e indo em
direção à porta.
Maria
de pronto a acompanhou. Saíram da cozinha e foram direto para o quarto. Maria
de imediato se abaixou e tirou de debaixo da cama um urinol esmaltado de branco
e se agachou pra urinar. Sua mãe olhou-a com um ar de repreensão e esbravejou:
-
Por que tu não fez no quintal Maria, antes da gente vim deitar? Vai encher o
penico antes da hora.
-
Eu faço pouquinho mãe. Não to com muita vontade. É só pra não ter que levantar
mais tarde. – O queixo de Maria ainda batia, sua mãe percebeu pela voz tremida.
-
Credo em cruz menina! Segunda-feira, se tu não melhorar, vou ter que te levar
no médico. Isso não pode ser por causa do jejum, não, senão eu também estaria
tremendo! T´esconjuro, deve ser alguma coisa do outro mundo! Será que tu tá com
algum encosto?
Maria
deu de ombros e levantando-se empurrou o urinol para debaixo da cama e se
deitou encolhendo debaixo da coberta. Sua mãe já se ajeitava por sua vez,
pondo-se a debulhar o terço, como fazia todas as noites e principalmente naquela
que era uma noite santa. As horas foram passando e Maria sem ainda conciliar o
sono viu quando sua mãe findou as orações e se deitou logo de imediato pondo-se
a puxar um ronco acompanhado de um som semelhante a um assovio. Maria,
prestando atenção aos sons do sono da mãe, dormiu. Depois de alguns minutos um
uivo longo e doloroso assustou-as fazendo-as acordarem com os corações aos
pulos.
-
Valei-me Nosso Senhor Jesus Cristo! Foi tu Maria? – Benzeu-se Dona Raimunda
fazendo o sinal da cruz. Tateou a cabeceira da cama atrás do terço.
Encontrando-o, mais do que depressa se pôs a debulhá-lo novamente.
-
Deus me livre mãe! Eu não! – Maria puxou a coberta até o queixo apoiado sobre
os joelhos e ficou a esperar. Sabia que alguma coisa estranha estava
acontecendo. Daí a pouco novo uivo, dessa vez, mais próximo e mais forte, mas
ainda lamentoso e longo.
- É
um lobisomem, mãe! – Apostou Maria num fio de voz, continuando a bater queixo.
-
Será?! Valei-me Nossa Senhora! E Dezinho que não chega!
Ficaram
mudas e imóveis. Não tinham coragem de mover um músculo. Apenas Dona Raimunda
que movia os lábios em
oração. Maria procurava evitar até os pensamentos com medo de
ser adivinhada. Começaram a ouvir passos. Os passos pareciam rodear todo o
terreiro e quando se aproximavam da casa, paravam na porta da frente. Ouviram
também o farejar que parecia ser de um cão. Maria ouvia as pancadas do próprio
coração e tinha a sensação de este ia lhe sair pela boca. De repente o animal,
ou fosse lá o que fosse, começou a arranhar a porta.
-
Meu Deus, o que será isso, meu Jesus! – Apelou Dona Raimunda. Olhou para Maria
e viu que esta estava pálida e imóvel como uma estátua. Sacudiu-a.
-
Calma Maria! Não há de ser nada! – Dona Raimunda, também apavorada, tentava
acalmar a pobre da menina.
Começaram
a ouvir ao longe um latido de cachorro, só que um latido familiar.
-É
o latido de Tulipa, não é? – Dona Raimunda se levantou indo em direção à
janela. Maria saltou sobre ela:
-
Não abre mãe! Não abre! – Seus dentes chocavam-se uns com os outros incontrolavelmente.
-
Mas menina, deve ser teu pai que vem chegando! Tu não ta ouvindo o latido de
Tulipa?– Vendo o terror da filha a mulher concordou – Está bem. Se for teu pai
quando ele chegar ele chama na porta.
O
latido da cachorrinha se fez ouvir mais perto e mais perto, mas logo em seguida
ouviram apenas um ganido baixinho depois, o silêncio.
Ficaram
ali sentadas na cama orando por mais algum tempo até que Maria deu outro pulo
da cama assustada.
-
Que foi agora menina! O bicho não uivou não!
- A
senhora não ouviu? – Conseguiu dizer tentando trincar os dentes.
-
Não ouvi o quê, menina? – Perguntou apurando os ouvidos.
-
Um barulho...de pano rasgado... – E como quem lembra de alguma coisa Maria
começou a chorar.
Dona
Raimunda já alarmada, pôs-se a sacudir a menina:
-
Que diabos tu tem, Maria? Ta ficando doida? Por que ta chorando agora?
Maria
se afastou e se encolheu num canto do quarto.
- O
meu vestido,... mãe! Aquele vermelho... de florzinha amarela! O... que eu...
mais gosto.
- E
o que é que tem o vestido menina? – Perguntou a mãe sem entender mais nada.
Maria
com medo da reação da mãe, pôs-se a gaguejar ainda mais:
-
Eu sei.... que é pecado.... A senhora me...avisou. Mas eu lavei.... o vestido
hoje... botei pra secar... na cerca de arame... e esqueci de pegar.... Parece
que... o bicho rasgou ele.
A
mãe deu-lhe um cocorote na cabeça praguejando:
-
Mas menina, tu ta doida? Tu não sabe que não pode trabalhar dia de hoje, trem
ruim! – Benzeu-se pela imprecação. - Bem feito, pra tu, que ficou sem o
vestido! Teu pai vai te esfolar o lombo quando souber, tu vai ver! É bom se
preparar!
Maria
chorava baixinho penalizada pelo vestido e por medo do que ela tinha quase
certeza. Com tudo isso a noite passou elas não mais dormiram, e o dia
amanheceu. Dona Raimunda foi pra cozinha fazer o café e Maria ficou de levar o
urinol para despejar fora a urina da noite anterior. Com medo de sair no
quintal, da janela da sala de dentro, jogou fora a urina. Sua mãe vendo deu-lhe
uns tabefes:
-
Tu toma vergonha! O quintal vai ficar numa catinga só! Ta com medo do
lobisomem? Se foi ele, já foi embora sua boba, o sol já saiu.
Depois
de alguns minutos seu Dezinho chamou na porta. Dona Raimunda correu a abri-la.
-
Bom dia mulher! Bom dia Maria! – Cumprimentou-as entrando casa adentro indo na
direção da cozinha. Tulipa o acompanhava – To doido por um café. Já coou?
Entraram
todos para a cozinha. Dona Raimunda depositou na mesa o bule, as xícaras e um
prato com bolo frito e beiju. Maria ficou olhando o pai com a cara assustada.
Este não percebeu e abriu a boca para morder um beiju, foi aí que Maria viu nos
dentes dele, pedaços pequenos de pano vermelho e amarelo.
Caetité, maio/junho de 1982.
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