sexta-feira, 10 de dezembro de 2010

APENAS MAIS UMA FEIRA DE SEXTA-FEIRA



A madrugada daquela sexta-feira estava fria por demais. Seu Dezinho olhou seu antigo relógio de pulso de marca Orient e viu que já passavam das 3h e meia da manhã. Teria que levantar, e, rápido, pois do seu pequeno sitio até a cidade tinha um bom pedaço de chão para vencer. Sua filha Maria e sua cadelinha Tulipa iriam acompanhá-lo. Essa era a rotina de toda sexta-feira, dia em que levavam alguns poucos produtos para vender na feira. Naquele dia específico levaria banana, batata-doce, alguns frangos caipiras e algumas poucas dúzias de ovos. O dinheiro que recebia em troca da mercadoria, lá mesmo na cidade deixava, comprando algumas coisas pra casa e bebendo alguns goles de cachaça.
Quando levantou, sua cachorrinha, que dormia nuns trapos ao lado da sua cama, já estava a sua espera, toda alegre e faceira, pois sabia que aquele dia era dia de passeio.  Virou para o lado e sacudiu a mulher que resmungou fazendo força para acordar. Tornou a cutucá-la e chamou-a com uma voz que mais parecia um grunhido. Lá do seu quarto mesmo gritou por Maria que dormia na sala sobre um couro de boi e uns pedaços de pano que um dia foi uma coberta. A menina, de um salto pulou fora da “cama” e esfregando os olhos ainda desorientada se dirigiu para o quintal a fim de urinar e lavar o rosto. Não queria se atrasar, pois tinha medo do pai, principalmente das suas gritarias. Odiava o grunhido da sua voz, pois os sons que lhe saiam dos lábios eram mais facilmente compreendidos por sua cadelinha do que por qualquer ser humano. O diálogo entre eles era pouco ou quase nada. Falavam o estritamente necessário. Rosnavam um para o outro quando queriam algo ou na prestação de contas de alguma tarefa realizada.
Seu Dezinho vestiu a sua melhor roupa. Uma calça de tergal azul escura e uma camisa branca de igual tecido. O chapéu de massa azul, presente de um amigo que chegara de São Paulo, era o melhor que tinha. O que usava na roça era de um couro velho já bastante estragado.  Dirigiu-se às pressas para a cozinha para fazer o desjejum e viu que a mulher ainda labutava em acender o fogo. A fumaça que subia do já gasto fogão de lenha ardeu-lhe nos olhos e ele praguejou. Era um homem eternamente mal-humorado, de natureza azeda. A mulher e a única filha tremiam ao som da sua voz. Impaciente deu outro berro chamando por Maria. Esta entrou na cozinha cabisbaixa já vestida com sua melhor roupa: um vestido de chita vermelha estampada com florzinhas brancas e rosas. Aquele vestido foi presente de sua madrinha que morava em São Paulo. Sua madrinha prometera levá-la para morar com ela, mas Maria já não acreditava que isso fosse acontecer, pois já fazia muito tempo que essa promessa fora feita.
Depois de mais alguns minutos ela, o pai, a cachorrinha e um burro que carregava as mercadorias num caçuá, marchavam num passo rápido e constante para o vilarejo. Seu Dezinho e a cachorrinha iam à frente, Maria, tiritando de frio, e o burro iam atrás. Maria observava o pai e a cachorra. Eles se entendiam tão bem, se comunicavam com tanta facilidade que Maria ficava pensando que seu pai tinha algum dom especial por consegui entender e ser tão bem compreendido pela cachorrinha. Com Tulipa, ele era sempre carinhoso, dócil. Quando almoçavam na feira e mesmo em casa, ele reservava sempre os melhores pedaços de carne, nas raras vezes que podiam desfrutar dessa iguaria, para si e para a cachorra. Na estrada, indo pra feira ou voltando pra casa, quem primeiro recebia água para matar a sede era a cachorrinha. Maria não mais se importava com aquilo. Talvez nunca tivesse se importado. Era natural para ela, pois sempre fora assim. Não tinha por que ser diferente Não sabia se seu pai é que era próximo dos animais ou se Tulipa é que era próxima dos humanos.
O dia começava a raiar no horizonte e o céu surgia tingido em variados tons de amarelo. Maria sempre gostava de ver o nascer do sol. Adorava ver as aquelas formas mágicas e misteriosas que o colorido formava no nascer do dia. Lembrou-se do cochilo sob o pé de cedro que aquele dia não poderia desfrutar. Desfrutaria sim do calor infernal naquela feira cheia de gente e de odores estranhos que a faziam enjoar e sentir tontura. Maria já se sentia cansada daquela rotina de todo dia de sexta feira sair com seu pai e a cachorra na madrugada fria. Sua mãe, coitada, ficava anos sem colocar os pés pra fora da porteira da “roça”. Entrava dia e saia dia, socada naquela casa, sem ver nada nem ninguém. Mas aquilo para Maria também era normal, natural. Sempre fora assim, então, acreditava que não podia ser diferente, ou melhor, nem imaginava que podia ser diferente.
Ao entrar na currutela, o dia já estava claro, mas era ainda muito cedo. Dirigiram-se ao lugar em que, costumeiramente, ficavam, arriaram a carga sob uma árvore de copa até larga, que lhes proporcionava uma boa sombra. Mas com o subir do sol, mesmo sob aquela árvore, o calor iria se instalar. Maria já sabia que seu pai ia ficar o dia inteiro zanzando pra lá e pra cá e ela vendendo as mercadorias. O burro se acomodou sob a copa da árvore e pareceu respirar aliviado quando tiraram de sobre suas costas o peso dos produtos de venda. Maria sentou-se no chão. Já sentia fome. Olhou para as bananas, mas não se atreveu a pegar nenhuma porque já estavam contadas e se ousasse comer alguma, a surra que tomaria, não valeria mais do que algumas horas de fome. Maria já se resignara a sentir o estômago roer. Sabia que só comeria um pouquinho de farofa ao meio-dia, mas isso também era natural e normal. Sempre fora assim, não tinha porque ser diferente.
A manhã passou, o sol subiu e Maria continuava lá, vendendo os produtos e guardando os poucos trocados num pequeno saquinho de pano. Vez ou outra seu pai aparecia e lhe tomava o graúdo, deixando-lhe apenas os miúdos para algum eventual troco. Ao meio dia os três comeram a farofa de ovo e Maria sabia que a si seria reservada uma pequena parte. Comeu indiferente, mas sentiu um certo conforto no estômago que há horas estava oco e soltando cada ronco que não lhe permitia cochilar sob aquele calorão. Agora com o estômago forrado, o sono iria dominar-lhe de vez, mas ela teria que resistir para vigiar a mercadoria. Se sumisse alguma coisa seu pai lhe daria uma peia sem dó e sem piedade. Maria se colocou de pé para espantar a modorra que se aproximava. Olhou pro burro e este de olhos fechados parecia cochilar. Invejou-o, pois ele poderia dormir a tarde toda se quisesse. Olhou pro chão e viu que ali ainda restavam duas galinhas e algumas pencas de banana. Pediu a Deus que lhe permitisse vender tudo e já.
A tarde começou a avançar e Maria percebeu naquela altura, já indiferente, que a mercadoria ia aos poucos desaparecendo. Sabia que venderia tudo. Agora tanto fazia vender rápido ou não, pois o sono já havia ido embora.  A tarde caiu e seu pai apareceu novamente. Arrumaram as tralhas e pegaram o caminho de casa. Ele e Tulipa na frente ela e o burro atrás. Maria andava por aquele caminho, como sempre andou toda sexta feira. Olhou para os pés cobertos de poeira, os mesmos de sempre. Olhou a paisagem, a mesma de sempre, e foi como se Maria não tivesse visto nada, pois quando se acostuma com as coisas é como se não as percebesse mais. Mas isso era normal e natural para Maria. Sempre fora assim. Não tinha porque ser diferente.

Março de 1983