Conto escrito em maio de 1983.
Naquele dia, dia acalorado para Seu Quincas, foi um dia infernal. O corpo todo lhe doía, a febre consumia-lhe e a assadura lhe incomodava os fundos. Tudo isso porque uns dias atrás, nas suas andanças pela roça levou uma topada e saiu aos tropeções tentando se equilibrar, mas mesmo assim, beijou o chão e encheu a boca de terra e cisco. Levantou praguejando e cuspindo fora uma rama de mato que teimava em permanecer em sua boca. Levou a mão ao dedão do pé ao sentir a sandália molhada de sangue. A unha ficou com a metade suspensa. Teria que cortar fora o pedaço.
- Maldição! Praguejou mais uma vez. Aquilo ia ser uma papeira por muitos dias! Tirou a sandália e deixou sua cachorra lamber o sangue. O animal, não satisfeito apenas com o sangue da sandália, espichou a língua e lambeu-lhe o dedo machucado, arrancando-lhe um uivo de dor.
Sua esposa preparou uma papa de flor de malva, mastruz, sal e vinagre, mas pelo jeito não adiantou muito, já que dias depois o dedo já não tinha mais a aparência de dedo e sim, de uma cabeça de cobra, e das grandes! Como se não bastasse todo esse tormento, sendo obrigado a ficar de repouso, impedido de trabalhar, sua esposa, fazendo galhofa, lhe recomendou não sair de casa, pois perigavam as cobras se aproximarem, caçando amizade. Como a cabeça do dedo estava inchada e roxa, seus amigos lhe aconselharam a procurar um médico e, além do mais, a febre já lhe punha a bater queixo. Seu Quincas borrava nas calças ao imaginar se consultando com um médico. Aquele cheiro de hospital, aquela roupa branca de doer as vistas, aquela voz mansa, aquele cheiro de remédio que impregnava o médico lhe davam arrepios e lhe causavam enjoo. Mas, pelo jeito, tinha que ir ou então morreria de tétano. Da sua roça ao povoado distavam uns quinze quilômetros. Teria que montar no lombo do cavalo, pois não tinha carro nem dinheiro pra fretar um. Sem ter como apelar pra outro remédio, resolveu ir ter com o doutor. Foi dormir na véspera da consulta com um frio na barriga. Rolou na cama de um lado pra outro, mas não conseguia se agarrar ao sono. Depois de muito vai e vem, enfim conseguiu passar por uma breve modorra. Mais tarde, por volta da madrugada, acordou tremendo de frio e dor na barriga. Correu pra casinha que servia de sanitário e arriou as calças.
O produto da diarréia lhe desceu pelas vias inferiores, como se fosse um braseiro, numa ardência terrível. Puxou pela memória e lembrou que não havia comido pimenta nem naquele dia, nem no dia anterior. Estranhou, pois só sentia queima ao defecar quando comia pimenta. Agora mais essa: além do dedo doente e da febre, essa disenteria fora de hora. Com certeza, depois dessa via crucis noturna, iria ter assaduras, que certamente se agravaria com os solavancos da viagem no lombo do animal. O suor começou a descer em bicas e a expulsão dos gases assustou os cachorros que se puseram a latir. Depois de mais alguns minutos purgando seus pecados, Seu Quincas se ergueu e retornou ao quarto. Deitou na cama vagarosamente pra não acordar a mulher que dormia o mais tranqüilo dos sonos. Puxou a coberta até o queixo e ficou quietinho pedindo a Deus que a diarréia não voltasse a atormentá-lo, pelo menos até o raiar do dia. Ficou cismando em como seria dolorosa a travessia até o povoado. Não podia se esquecer de pedir à esposa para lhe passar um pouco de polvilho nas partes íntimas, para prevenir as assaduras, antes da viagem. Será que teria muito que esperar na fila, meu Deus? Fila de médico é sempre muito comprida! Ainda mais que o doutor só atendia lá uma vez por semana! Se assim fosse, com certeza, preferia morrer a sofrer tamanha ansiedade! Nada pior do que esperar por um tormento sabendo que não tem como evitá-lo. Se Deus lhe concedesse uma ajuda para que não precisasse ir ao médico! E se esse doutor cismasse em lhe arrancar a unha que estava encravada na carne? Só de pensar o estômago contraía. Preferia morrer. O galo cantou e a esposa meteu os pés e levantou. Olhou pro marido e se lembrou que teria que acompanhá-lo ao médico. Foi pros fundos da casa lavar o rosto e cuidar do café. Seu Quincas levantou fraco e tremendo de frio. A noite anterior voltou-lhe à memória e ele correu a pedir à esposa para lhe passar o polvilho.
- Criatura! Passe um pouco de polvilho no meu traseiro. Tá uma queimação dos diabos!
Esta se prestou a lhe atender. Fez-lhe deitar-se de bruços e untou-lhe as nádegas com o polvilho de tapioca. Em seguida dissolveu um pouco num copo d’água e deu-lhe de beber, pois além de assadura, era eficaz também para disenteria.
- Jesus, homem de Deus! Isso tá quase na carne viva. O que foi que tu andou fazendo pra assar esse traseiro desse jeito?
- Não sei. To estranhando, pois não comi pimenta esses dias...
Depois de alguns minutos gastos nos últimos preparativos da viagem, Seu Quincas já se sentia exausto. Não conseguiu fazer o desjejum direito. Mal bebericou um gole de café preto. As forças abandonavam seu corpo. Subiu no cavalo e se pôs em marcha com a esposa na garupa. Eram 3 horas da manhã e teriam que andar depressa para chegar o mais rápido possível ao povoado. O cavalo começou a andar num trote rápido e regular. Como era muito cedo, apenas o barulho dos cascos do animal se fazia ouvir, sendo interrompido vez ou outra, por um canto de galo, pássaros ou urro de algum jumento. Com o balanço da montaria Seu Quincas sentia náuseas e tontura. A manhã que surgia pareceu-lhe com uma cor estranha: de um amarelo pálido e cinzento. A boca amarga e seca aumentava a sensação de mal estar. Quando o sol já ia um pouco alto, teve a ligeira impressão de que a manhã se apagara e que ele tinha se ausentado dali. Sacudiu a cabeça, apertou os olhos e imaginou que aquilo devia ser porque estava com o estômago vazio. O dedo latejava. A faixa limpa que usava para cobri-lo, já estava toda empoeirada. Levantou a perna e apoiou o pé no cabeçote da sela. Sentiu os fundos arderem. A assadura se instalou de vez. De nada adiantou o polvilho, já que teve que se balançar em cima do animal. A lembrança do médico vinha-lhe à mente, mas tentava espantá-la prestando atenção à paisagem, porém de nada adiantava, já que aquelas paragens lhe eram tão familiares. De repente parou e disse à esposa que não ia mais. Ela rosnou e tocou o cavalo que voltou a andar. Seu Quincas deixou-se levar. Foi sentindo as forças lhe abandonarem. Parecia-lhe que se distanciava do mundo. Dali. A esposa ia ficando longe. Ia sentindo um sono. “Se pudesse dormir sobre o cavalo sem o perigo de cair, seria tão bom!”. Novamente veio aquela estranheza. A manhã se apagando e ele se ausentando de si. Nessa altura, já estavam próximos do povoado. Seu Quincas, percebendo a aproximação, desejou uma mãozinha de Deus. Preferia morrer a ir a um médico. Sempre foi assim, desde pequeno tinha medo daquela roupa branca de doer as vistas. Mais alguns minutos de trote entraram no povoado. O pequeno posto de saúde ficava logo na entrada. Deu pra ver a fila. Um montueiro de gente. Seu Quincas sentiu o mundo desabar sobre suas costas. Não tinha jeito pra ele. Ia ter que esperar na fila, naquele sol abrasador. E o dedo que não parava de latejar! O pé já estava todo preto. Preto de inchado. A febre que não cedia! O sol brilhando de quente e ele tremendo de frio! Parou o cavalo e desceu. Se não fosse um amigo e a esposa tinha caído do animal ao descer. Encostou-se à parede do posto e se pôs a esperar enquanto a mulher foi fazer a ficha. Depois de alguns minutos em pé com as costas apoiadas à parede foi se derreando, derreando e sentou-se no chão. Suava como um cuscuz. A manhã novamente apagou. O povo todo e o amigo desapareceram. Ele novamente se ausentou. Uma sensação rápida, mas estranha. Apercebeu-se de si com a mulher lhe cutucando e lhe mandando ficar de pé. Mal ouviu o que ela dizia. Suas pálpebras pesavam e tudo ia ficando distante mais uma vez. Ela tornou a lhe cutucar. Abriu os olhos com grande esforço e tentou olhar para ela, mas a claridade da manhã o impediu. Ela desistiu e ficou em pé ao seu lado. A fila ainda estava grande. Pediu um pouco d´água à mulher. Ela abriu a sacola, destampou uma garrafa e lhe deu um pouco. Sentiu-se quase feliz e descansado com aquele pouco de água. Tão bom aquele contato frio na sua boca seca! Sorriu pro nada e mais uma vez acalentou a esperança de não precisar se consultar. A fila tava tão grande! Quem sabe o doutor desistiria de atender aquele povaréu todo? Mas se não desistisse, ele, Quincas preferia morrer. Sorriu de novo. Um riso vazio e pro nada. De novo a manhã se apagou e ele se sentiu longe. Levou a mão para tocar a esposa, pois ela pareceu afastar-se dele muito rapidamente. E lá estava ela, longe, muito longe. Ela foi sumindo, sumindo, juntamente com a claridade da manhã até que seu Quincas não viu mais nada.
Deus atendeu a sua prece.
Coitado de Seu Quincas! Uma topadinha no dedo, o levou para sete palmos abaixo da terra. Adorei sua narrativa, Luciene! Parabéns.
ResponderExcluirImpressionante esse conto de uma menina de 17 anos. Um português maravilhoso, uma capacidade de narrativa impressionante. Minha admiração por você, Luciene, só cresce. Não me canso de ler e reler seus contos. E fico feliz por ser sua amiga e conterrânea. Parabéns Lu. Você é uma escritora de fato e de direito. Bj de Luz na alma.
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