sexta-feira, 19 de março de 2010

ROMUALDO, O PEREGRINO.


Texto escrito em julho de 2009.


A casa, que àquela hora da tarde estava com todas as portas e janelas abertas, abrigava uma quantidade enorme de gente. Ao longo das paredes das duas pequenas salas estavam distribuídas cadeiras e bancos, todos ocupados com os visitantes. Havia um maior número em pé, não só dentro da casa, como no terreiro da frente e do fundo. Muitos sentados nas calçadas, bebendo aguardente, fumando, tomando café e comendo bolacha palito, que vez ou outra, algumas mulheres serviam. No centro da sala principal havia dois bancos encostados um ao outro, cobertos com um lençol branco. Ali seria descansado o caixão do defunto que a empresa funerária iria dali a poucos minutos, trazer. A viúva, já um tanto avançada em anos, trazia o corpo trêmulo envolto num longo vestido preto e a cabeça num xale de indefinida cor. As amigas seguravam seu pranto, consolando-a com abraços, tapinhas nas costas e muitas xícaras de chá calmante. Todas em seus vestidos de velório e tendo, constantemente, as mãos ocupadas pelos terços que iriam debulhar quando o finado chegasse. A ladainha, pronta a saltar-lhes dos lábios, deixava-as impacientes com o corpo que tardava a chegar. Esses momentos, naqueles confins do sertão, eram eventos onde elas podiam exercitar seus gogós na cantoria e reafirmar, perante Deus, o status de boas cristãs. Os filhos, muitos, se apoiavam encorujados às paredes já encardidas e rotas, que deixavam à vista, aqui e ali, tijolos de adobão.
Ao longe se ouviu um ronco de motor e todos viram, envolto numa gigante nuvem de poeira, o rabecão preto brilhando à luz do sol da tarde.
Mais cedo na cidade, na empresa funerária, os últimos preparativos com o corpo estavam sendo feitos. Romualdo, um dos responsáveis pelo despacho dos defuntos, verificava o endereço de cada um. Concluiu que tudo estava em ordem e providenciou o embarque. Naquele dia houve pouco movimento, apenas três mortes lhes requisitaram os serviços. Entrou no rabecão que iria levar o presunto para a roça mais distante. Gostava de cuidar pessoalmente de alguns casos, pois prezava muito seu emprego, já que na maioria das vezes, se metia sem querer, em situações que lhe impediam a permanência num trabalho por muito tempo. Considerava-se um azarado nesse aspecto, pois já perdera a conta de por quantos empregos peregrinara. Com aquele, até o momento, estava dando tudo certo e o trabalho, apesar de ser um pouco desagradável, – ficar às voltas com finados – não era dos piores. Até que estava gostando.
Ele e o motorista, de longe avistaram o povaréu que se agrupava em frente à casa. Romualdo já sabia de antemão tudo o que ia acontecer: a mulher desmaiando, os filhos gritando, os compadres e as comadres ressaltando, em meio a lágrimas, - muitas de crocodilo - qualidades que nunca antes foram notadas no defunto. Quase todo mundo depois que morre vira santo, pelo menos por algum tempo, concluíra Romualdo em suas muitas freqüências a velórios.
Entraram com o corpo e a viúva pôs uma mão no peito e, se certificando de que as amigas estavam por perto, se preparou para o desmaio. Não chegou a cair, pois braços, mais do que ligeiros, a apoiaram. Respirou fundo e as amigas a acompanharam até o caixão que agora já se encontrava sobre os dois bancos. Romualdo desparafusou a tampa e lentamente a ergueu. Ouviu-se por toda a sala:
- Oohh! Meu Deus que horror!
- O que aconteceu com o compadre?
- Mas ele ficou tão mudado! Olhe só, Tião!
- Isso foi porque bebia demais! A bebida altera o corpo todo! Credo em cruz! Está irreconhecível!
- Esse não parece o compadre! Será que foi o espanto ao ver a cara da morte?
- Isso é o fim dos tempos! Não te falo sempre que o mundo está perto de acabar? Isso só acontece por causa dos pecados dos homens!
A pobre viúva se aproximou e sentiu fugir-lhe do rosto todo o sangue e sentiu também que a alma abandonava-lhe o corpo. Pálida como uma flor de algodão, encarou Romualdo, que inocente, não compreendia a cara de espanto dos presentes:
- Seu Romualdo, que brincadeira é essa? O senhor deu banho de cal no meu marido?- Gritou a mulher partindo pra cima dele – Olhe pra mim, olhe pros meus filhos! Meu marido era negro como eu, negro como os nossos filhos! Porque me trouxe esse defunto branco, parecendo uma cera? – Dizendo isso, levou novamente a mão ao peito, mas dessa vez não esperou as amigas, porque o desmaio foi verdadeiro.
Romualdo, depois de um tempo para processar o que estava acontecendo, se deu conta de que trocara o defunto, de que trouxera para aquela viúva o defunto errado. Mas, ainda assim, a única preocupação que lhe nublou o semblante foi ter a certeza de que, assim que retornasse à cidade, daria início a uma nova peregrinação.

3 comentários:

  1. Ricardo José Gouveia14 de junho de 2010 às 15:23

    Jeeesus! Que Romualdo trapalhão! Bela e saborosa narrativa. Gostei demais. Parabéns.

    Ricardo José Gouveia

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  2. Bastante expressiva a narrativa,Luciene, pitoresca, eu diria, pois sempre há algo de engraçado em velórios...Mas trocar o defunto?
    Bjs

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  3. Essa foi boa, excelente contista e seus contos de Caetité. Desbancou de longe o Agnaldo de Maracás.
    abraços, Luciene de Caetité...

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